Quem tem legitimidade para direcionar a coisa pública?

Quem tem legitimidade para direcionar a coisa publica
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Por Bruna Werneck – “A democracia é o pior sistema, exceto todos os outros” diz a célebre frase atribuída a Winston Churchill. No Brasil, são princípios da Constituição a impessoalidade, a publicidade e a eficiência. Desde 1988, criamos inúmeros mecanismos para concretizá-los e ampliar o controle social sobre a gestão dos recursos públicos, que são de todos nós e devem ser utilizados para promover o bem comum. O Portal da Transparência, a Lei de Acesso à Informação e o mais recente Painel Nacional são alguns exemplos de instrumentos que facilitam a fiscalização das contas públicas pelo cidadão comum. Quanto às eleições, a proibição da doação por empresas para campanhas e a publicação dos doadores dificultam a transformação de poder econômico em poder político, ou ao menos explicitam as forças que sustentam certas carreiras políticas.

Por outro lado, as elites que sempre mandaram no Brasil de forma inconteste resistem como podem ao escrutínio público. É disso que trata a matéria da jornalista Julia Affonso, Lula abre espaço para grupo de Lemann influenciar decisões de R$ 6,6 bilhões na educação, que saiu, segunda-feira (26/09/23), no Estadão.

Desde que iniciei meu mestrado em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense, em 2017 , me dedico a estudar a influência das chamadas “fundações empresariais” nas políticas educacionais do Brasil, com particular atenção à Fundação Lemann e outras iniciativas financiadas pelo bilionário. Há 30 anos, os sócios Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcelo Telles criaram a Fundação Estudar com o objetivo estrito de oferecer bolsas de estudo para que jovens brasileiros pudessem estudar em universidades americanas de prestígio. De lá para cá, essa ação pontual e específica se agigantou e espraiou para uma miríade de organizações do terceiro setor que exercem cada vez mais influência – e por vezes poder direto – na formulação e implementação de políticas públicas, principalmente, mas não exclusivamente, de educação.

Os bilionários são ao mesmo tempo empresários e filantropos. E aí, vem o famoso “criar dificuldade para vender facilidade”. Enquanto empresários, fazem lobby por uma reforma tributária que não mexa na vergonhosa concentração de riqueza que temos no país ou uma reforma administrativa que torne a máquina pública ainda menos robusta do que a que existe hoje. (Vale lembrar que no Brasil, 12,5% dos empregos estão no setor público, enquanto a média da OCDE é 21,1%). Com um Estado debilitado, com sérias restrições orçamentárias e carreiras congeladas que dificultam a atração de profissionais qualificados, entram em cena os mesmos personagens, com suas máscaras de filantropo. Ou, mais frequentemente, seus representantes: jovens qualificados e idealistas que vêem as fundações empresariais como caminhos para realizar suas ambições de transformar o Brasil (sem se sujeitar a um concurso público, sem “a pecha” de servidor ou de indicação política, duas categorias sujeitas ao escrutínio público que vêm sendo sistematicamente vilipendiadas).

Os órgãos públicos seguem de pé, porém esvaziados e o poder de formulação (e frequentemente implementação) está de fato fora da máquina do Estado. Nos últimos anos, observamos esse deslocamento da administração direta ou indireta para agentes privados, seja através dos instrumentos formais de delegação como parcerias público-privadas, acordos de cooperação, seja através de conselhos deliberativos e comissões executivas. Ocupam essas posições pessoas ligadas às fundações, que recebem os créditos quando a iniciativa é bem sucedida e deixam a responsabilização para os agentes políticos, quando ela naufraga.

E não é apenas sobre poder que se trata, mas também lucros: os recursos públicos podem bem ser empregados para a contratação de serviços e compras de produtos de empresas que têm por acionistas os mesmos filantropos. Vivemos uma nova fase do capitalismo, em que os mercados, por trás de discursos sobre eficiência, buscam financeirizar o bem comum. Nesse contexto, esses agentes econômicos aprendem formas de apropriar ainda mais das riquezas nacionais via iniciativa pública.

Por fim, vale lembrar que esses mesmos bilionários são os principais acionistas das Americanas, onde foi descoberta a maior fraude da história corporativa brasileira e que hoje é objeto de uma CPI. Então voltamos à pergunta do título: Quem tem legitimidade para direcionar a coisa pública? A meu ver, a resposta é clara: os agentes públicos, que estão sujeitos aos princípios constitucionais, ao escrutínio da sociedade e não lucram financeiramente com as soluções adotadas como resultado do seu poder político.

Por Bruna Werneck

Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense e autora do livro “O Projeto Lemann e a Educação Brasileira”