Inflação de alimentos em tempos pandêmicos

Em 2020, a inflação de alimentos medida pelo índice de preços ao consumidor amplo (IPCA) do IBGE atingiu 14,09% (a maior elevação em quase vinte anos), contra 4,52% do índice geral.
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Por Ana Neves e Habib Jarrouge – No último ano, os brasileiros voltaram a se preocupar com um problema que parecia superado: a inflação. Devido a aspectos externos e domésticos, muitos produtos ficaram mais caros, corroendo as rendas já reduzidas pela pandemia. Para piorar, os alimentos estão entre os bens cujos preços mais subiram, com impacto particularmente negativo na qualidade de vida das pessoas mais pobres.

Em 2020, a inflação de alimentos medida pelo índice de preços ao consumidor amplo (IPCA) do IBGE atingiu 14,09% (a maior elevação em quase vinte anos), contra 4,52% do índice geral. Alguns itens básicos como arroz, feijão e óleo de soja subiram mais de 60%. Quando olhamos para a inflação enfrentada pelos mais pobres, o quadro é ainda grave: uma taxa de 15,53% em 2020 pelo INPC (que considera as famílias com renda de até 5 salários mínimos) versus 5,45% do índice geral.

Mas o que está por trás dessa alta?

Não há, na realidade, um fator único, mas, sem dúvidas, a pandemia da COVID-19 é parte da explicação, pois desarticulou cadeias produtivas e impactou negativamente a logística de transportes, além de levar alguns países a uma corrida para a recomposição de seus estoques de alimentos.

Ao contrário do que a OCDE (o “clube” dos países ricos) e a FAO (órgão das Nações Unidas para a alimentação) esperavam em suas previsões de 2019 para a década de 2020-29, no ano passado o mundo assistiu a uma grande alta de preços agrícolas no mercado mundial. Além de fatores mais diretamente ligados à emergência sanitária, como a elevação dos custos de transportes e algumas restrições de oferta por grandes exportadores (como Rússia—trigo— e Argentina e Ucrânia—milho), foram também observados efeitos adversos de eventos climáticos (por exemplo, o La Niña) sobre a produção de grãos em vários países; o aumento da especulação no mercado de ativos ligados a bens agrícolas; e maiores importações por alguns países, com destaque à China.

Com a demanda internacional em alta, parte da produção brasileira tem sido revertida para as exportações, o que piora ainda mais o cenário dos preços internos (os produtores preferem vender lá fora, o que diminui a quantidade de produtos aqui dentro, levando a seu encarecimento). A isso se somou a intensa desvalorização cambial durante o ano de pandemia, o que tornou os preços dos alimentos em Real ainda mais altos—lembrando que além de não sermos autossuficientes na produção de itens básicos (como o arroz), também importamos bens manufaturados a partir de produtos agrícolas que exportamos (exemplo: laranja/suco de laranja).

Hoje, além de se deparar com preços em elevação, as famílias brasileiras enfrentam altos níveis de desemprego e subemprego. Em paralelo à queda da renda do trabalho durante a pandemia, houve a suspensão do auxílio emergencial (já retomado, mas com redução significativa de valor e restrição a um número menor de pessoas).

O resultado desse conjunto de fatores não poderia ser outro: o aumento da fome, da insegurança alimentar e a piora na qualidade da alimentação dos brasileiros, com elevação do consumo de comida ultraprocessada, cujos preços não subiram tanto quanto os dos alimentos frescos.

De fato, a FAO advertiu recentemente que o encarecimento dos alimentos tem contribuído para o agravamento da fome no mundo, em especial nos países e camadas populacionais mais pobres. O índice de preços de alimentos da instituição atingiu em abril o valor mais alto desde março de 2014, levando a organização a alertar para os efeitos de longo prazo da piora nutricional (em quantidade e qualidade) sobre a saúde de dezenas de milhões de pessoas no mundo, especialmente as crianças.

Embora a OCDE e a FAO estimem uma trajetória declinante para os preços dos alimentos ao longo da próxima década, o cenário para os próximos meses é muito incerto. A previsão é de expansão da produção das principais culturas (como trigo, milho, arroz, soja), o que ajudaria a conter a volatilidade e os aumentos de preços. Porém, a necessidade de recomposição de estoques (atualmente baixos), a permanência dos desafios climáticos e a retomada do crescimento nos países que avançarem no combate à pandemia devem continuar a colocar pressões sobre os preços.

No Brasil, por enquanto, é isso que continuamos a ver: enquanto outros itens da cesta do consumidor dão sinais de melhora, a comida segue cara, com alta de 1,43% em janeiro-março (medida pelo IPCA). Em 12 meses, acumula elevação superior a 12%.

Se considerarmos que por aqui a emergência sanitária deve continuar em níveis críticos por mais vários meses, não parece que o problema da fome em um cenário de alimentação mais cara vá ser vencido via mercado de trabalho, já que a geração de novos postos deve permanecer relativamente baixa por algum tempo. Assim, para evitar que milhões de brasileiros enfrentem a dor diária de pratos vazios, o auxílio emergencial precisa não apenas ser prorrogado, como também ter seu valor elevado e ser ampliado para mais famílias. Caso contrário, mais e mais de nossos conterrâneos serão empurrados para a miséria e a fome todos os dias.

Por Ana Neves e Habib Jarrouge