Ideias monetaristas não servem para integrações regionais

Ideias monetaristas nao servem para integracoes regionais
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Ideias monetaristas não deveriam ser o ponto de partida de um processo de integração econômica regional. A periclitante — para não dizer malograda — experiência do Euro já deveria ter informado o mundo sobre os riscos de pensar integrações geoeconômicas pela via monetarista. O artigo a seguir defenderá um viés produtivista para a integração regional sul-americana, como ficará claro ao longo da leitura. O motivo para esta reflexão, evidentemente, é o anúncio da intenção de Brasil e Argentina em estabelecer uma moeda comum para trocas comerciais e fluxos financeiros.

De cara, precisamos separar as coisas. Caso a proposta fosse de uma moeda única, em substituição ao Real brasileiro e ao Peso argentino, seria uma péssima ideia. Talvez uma tábua de salvação para a economia argentina, que é refém dos dólares que não tem, mas mesmo assim uma salvação de curto prazo: esta hipotética moeda única não teria a conversibilidade universal das moedas fortes, o que levaria o Brasil (maior PIB da região e gestor do projeto de unificação) a ter que absorver todos os choques de volatilidade, desvalorização, desequilíbrios e assimetrias. O resultado seria um desastre, concretizado em termos práticos na erosão das reservas internacionais do Brasil em moeda forte (o dólar), hoje calculadas em algo entre US$ 350 bilhões e US$ 400 bilhões.

Porém, não é disso que se trata. (Ao menos ainda não é, dado que o monetarismo pode iludir a esquerda tanto quanto a direita, e pode haver aqueles que vejam uma moeda única como grande saída continental). Do que se trata? Do seguinte: Brasil e Argentina estabeleceriam uma moeda comum chamada Sur, gerida por uma câmara de compensação bilateral, a fim de viabilizar sem dólares as transações comerciais e fluxos financeiros (créditos, transferências, seguros, pagamentos etc etc) entre os dois países.

Em princípio, parece uma boa ideia aos ouvidos de uma sensibilidade esquerdista. Afinal, seria uma forma de dispensar o dólar no fluxo comercial bilateral dos dois maiores países da América do Sul. Para a Argentina, seria muito melhor do que para o Brasil, dado que nosso vizinho sofre de uma tremenda restrição externa e há décadas convive com uma dolarização clandestina de sua economia doméstica. A moeda Sur poderia conferir aos importadores e exportadores argentinos (e seus sócios financeiros) uma reserva de valor diferente do dólar. Inicialmente, valeria apenas para o comércio com o Brasil, mas seria significativo para o país.

E para o Brasil? A ideia não parece tão boa. As assimetrias comerciais, empresariais corporativas e de tecnologias entre os dois países são ainda grandes, apesar da desindustrialização brasileira. Isto nos leva a pensar que, naturalmente, as exportações brasileiras para a Argentina usando a moeda comum exigiriam uma escala de valor da moeda Sur similar ao diferencial do dólar em relação às duas moedas nacionais ao tempo de sua implementação.

A Sur viria para substituir o dólar nas transações bilaterais. Isso significa que para fazer sentido econômico e evitar descontinuidades nas transações comerciais, seu valor em relação às moedas nacionais de Brasil e Argentina deveria ser estabelecido em alguma escala próxima ao que a moeda de conversão hoje tem para cada moeda de origem.

Mas a proposta é que a Sur se torne um instrumento de integração, que aumente os volumes comercializados, que contribua para gerar mais linhas de crédito e movimente os financiamentos de projetos de infraestrutura etc etc. Como, se ela for estabelecida a um patamar de valor similar ao do dólar a tempo presente? (Lembremos que uma situação como esta não interessaria à Argentina, e por outro lado, a Sur com valor próximo ao Peso argentino traria problemas econômicos para as exportações brasileiras).

Fica evidente que o valor da Sur seria, provavelmente, estabelecido sob duas condições: a) flutuação controlada por meio de banda cambial gerida pela câmara de compensação; e b) uma sistemática de compensações financeiras que reduza os efeitos das trocas desiguais sobre as duas economias.

Brasil e Argentina precisariam fazer um arranjo segundo o qual as exportações de um para o outro não sofreriam nem um choque de supervalorização (o que poderia acontecer com as exportações da Argentina para o Brasil, visto que o Peso vale muito menos que o Real), e nem um choque de subvalorização (o que poderia acontecer com as exportações do Brasil para a Argentina, pela oposta razão).

Este arranjo demandará, naturalmente, depósitos financeiros feitos à câmara de compensação. Estes depósitos poderiam ser feitos em Pesos, Reais ou, muito mais provavelmente, em… dólares.

É aí que entra o que a meu ver é o X da questão. Se a Argentina não tem dólares, e as compensações financeiras da moeda Sur podem demandar dólares, quem arcará com os depósitos? O único outro gestor da moeda bilateral que, por coincidência, goza de uma polpuda reserva internacional em dólares. Ou seja, o Brasil.
Claro, podemos pensar que as exportações bilaterais e, melhor ainda, os fluxos financeiros, pagassem taxas em Sur para alimentar a câmara de compensação. Mas dificilmente uma fração de cada transação avolumará recursos necessários para compensar assimetrias econômicas de proporção equivalente ao inteiro da fração. A parte não compensa o todo. Não vejo maneira de evitar que a câmara de compensação viesse a precisar de dólares para continuar a pagar os diferenciais gerados nos fluxos bilaterais.

Pode-se ainda argumentar que os diferenciais seriam geradores de “lucros” cambiais para a Argentina e “prejuízos” cambiais para o Brasil. E que, portanto, o uso das reservas internacionais do Brasil para compensar os “prejuízos” seriam destinados majoritariamente ao próprio Brasil. Mas aí, estaríamos queimando nossas reservas internacionais para obter os mesmos Reais que o governo emite soberanamente a qualquer tempo, bastando para isso que se liberte do dogma fiscalista?

Se o jogo for esse, não vale a pena.

Bem, é nisso que dá pensar integrações econômicas internacionais a partir de ideias monetaristas. Eu, que graças a Deus não sou economista, mantenho horizontes mentais de criatividade e imaginação dos quais os economistas são em geral treinados a se privar.

Assim sendo, minha mísera contribuição ao debate da integração regional se dá pela defesa de uma ideia produtivista como ponto de partida da integração econômica. Brasil e Argentina deveriam estar anunciando a criação de grandes empresas e projetos comuns, e não uma moeda comum.

Já perdi qualquer esperança de que ideias assim um dia vejam a luz da realidade, e por isso mesmo me sinto ainda mais livre para divulgá-las, quase me sentindo uma espécie de Barão de Münchhausen.

Se os Correios do Brasil, que ainda pertencem ao Estado, podem por lei abrir empresas fora do Brasil, o que se passa na cabeça dos nossos governantes que ainda não pensaram em formar uma grande empresa pública continental (com participação argentina, que seja), aos moldes da DHL alemã? E, em fazendo-a, por que não copiar a DHL alemã e constituir uma empresa de transporte aéreo para os despachos internacionais, usando aviões da Embraer?

Se empresas nacionais como Agrale e Jacto são provedoras do agro brasileiro, por que o ministro Alckmin não promove a criação de uma distribuidora continental de máquinas agrícolas brasileiras com sede na Argentina, empresa esta que pagaria comissões robustas aos vizinhos e os royalties e pagamentos restantes ao Brasil?

Se o gás de Vaca Muerta pode chegar ao Brasil por Uruguaiana, por que o governo brasileiro não cria uma empresa pública para a partir do Sul concorrer com a francesa que comprou os gasodutos do Norte e Nordeste vendidos por Bolsonaro, a preços subsidiados para a realidade do Brasil, mas plenamente satisfatórios para os argentinos?

Se indústrias de médio porte e média tecnologia, brasileiras e argentinas, têm as complementaridades e superposições que têm, então por que não abrimos linhas de crédito para que elas atuem em joint venture nos mercados globais, podendo aí sim ganhar escala e estabelecer redes comerciais significativas (exemplos: guindastes, betoneiras, motores e redutores elétricos, aços especiais e alumínio, alimentos industrializados, têxteis e outros)?

Enfim, são muitas as possibilidades de uma agenda de integração econômica produtivista. Mas enquanto nada disso passa diante dos olhos de ministro de parte alguma, debatem-se os encalacros potenciais de uma integração monetarista que, em termos de economia real, não têm muito mais a entregar do que promessas.