O ideário compensatório do governo Lula, ou Rawls, Foucault e Mandela

O ideario compensatorio do governo Lula ou Rawls Foucault e Mandela
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Sob o pretexto de rearrumar a casa bagunçada pelo bolsonarismo, o governo Lula gastou seu primeiro semestre de poder com poucas barganhas, muitas promessas e alguns truques. O retorno do país ao cenário internacional não é fantasia, é fato; o engessamento econômico produzido pelos juros astronômicos da gestão de Campos Neto no BC não é perturbação periférica, é preocupação central; a rotina de acertos com o presidente da Câmara, dada a composição congressual recheada de bolsonaristas, não é uma opção, é uma necessidade. Há justiça na escolha dessas e de outras frentes por parte do governo e não reconhecer isso seria um erro. Mas elas não são propriamente presididas por um imperativo de reorganização completa da vida nacional. O governo não demarca o que o Brasil é à luz do que ele quer se tornar na relação com os outros atores e poderes, com os agentes econômicos e com os demais países. E assim, ele segue com raros momentos em que finge ter vigor, quando tudo o que oferece é um pacote de escambos, acenos e lacres, todos inócuos.

O que se poderia sondar enquanto projeto desse governo é a realização de um ideário sem compromisso com o futuro do país. O vácuo de ideais que interpretem o Brasil reconhecendo sua unidade e orientando a sua construção institucional e ação internacional, em um mandato pós-Bolsonaro, é grave. O ideário que respalda esse vácuo pelas ações do governo, desde a composição ministerial, é insuflado por um pensamento do tipo: “apesar do mundo, das estruturas, da extrema direita, apear de tudo… podemos pelo menos fazer tal ou qual coisa”. O ideário do “pelo menos” por trás do projeto de Lula é um ideário compensatório.

Esse ideário tem duas faces nitidamente distintas nas ações governamentais: uma distributivista, a outra identitária. A parte distributivista da compensação é sumarizada no slogan repetido pelo presidente: “levar o pobre ao orçamento”. Isso quer dizer organizar a gestão priorizando a criação de instrumentos de descentralização de recursos para as camadas populares.

A parte identitária da compensação é sobejamente simbólica. Consiste sobretudo em conferir representatividade às minorias políticas com cargos, propagandas, patrocínios, prestígio público e ações pontuais diversas que confirmem o discurso motivacional da resistência esgrimido pelos porta-vozes identitários da imprensa e da academia. Olhando assim, é como se o acervo mental do governo conciliasse duas filosofias políticas, as de John Rawls e Michel Foucault. (E, antes que praguejem os estudiosos e simpatizantes desses filósofos, não me refiro a eles como autores, mas como legados difusos, fontes de ideias e inspirações latentes – e às vezes explícitas – nas ações e discursos dos membros do governo.)

O distributivismo extraído das premissas da teoria da justiça de John Rawls é a face mais prática e propositiva. Ela envolve os ministérios que cuidam do dinheiro e de seu entrono, entre os quais destaca-se a pasta chefiada por Fernando Haddad. Consciente da delicada tarefa de lidar com um sistema financeiro tripulado por agentes bem organizados e indiferentes à situação social do país, o ministro vem se esforçando para fazer média com o mercado, oferecendo um “arcabouço” fiscal que permitirá discreto investimento público nos próximos anos e baixa expectativa de crescimento. O esboço da reforma tributária entoa sob o mesmo diapasão. Mas, justamente com isso, o governo pelo menos não passará por caloteiro eleitoral, vez que assegurará em seu orçamento recursos para os programas sociais que Lula prometera em campanha, como o Bolsa Família e o Minha Casa, Minha Vida.

O distributivismo consiste em atenuar as consequências cruéis da economia de mercado, em vez de encará-la e pautar a sua reorganização. No miúdo, é incluir o pobre no orçamento justamente para não ter de enfrentar a pobreza. Eis a consequência real da equidade rawlsiana para um país constitucionalizado, mas subdesenvolvido: o pacto pobrista.

O identitarismo extraído do legado difuso de Foucault em suas primeiras fases é a face estética e, de alguma forma, moral com que o governo se exibe para a opinião pública. Mas é um Foucault diluído pelas limitações burocráticas e pela ênfase na sensibilização do discurso em favor da situação dos brasileiros oprimidos. Essa face identitária envolve os ministérios de representação, como o da Igualdade Racial, das Mulheres, dos Povos Indígenas, dos Direitos Humanos e Cidadania, da Justiça e Segurança e da Cultura cujas chefias foram designadas também para acalentar as demandas da barulhenta elite identitária que apoiou a candidatura de Lula e que hoje comemora orgulhosamente qualquer pronunciamento de seus pares engravatados.

A face identitária da compensação avança por diferentes falanges no governo – inclusive, e quiçá principalmente, pelas ações da participativa primeira-dama. Seu conteúdo é variado. Em parte, consiste em eliminar tanto quanto possível os resíduos bolsonaristas das ações de Estado. Isso se verifica em uma série de revisões, como a do decreto de armas (que, em tese, favorecia os opressores), ou como a que altera o documento da carteira de identidade (que, em tese, favorecerá os oprimidos). Em parte, o identitarismo governamental intensifica o uso da representatividade das minorias com políticas culturais de enaltecimento do negro, do indígena, da mulher e do não-hétero e de correção de comportamentos racistas, machistas, homofóbicas etc. Trata-se de uma compensação simbólica.

O limite do governo pelo lado distributivista está em conservar o mercado e as instituições que o organizam e o articulam tais como são. O limite pelo lado identitário está em aceitar o caráter fragmentário das agendas das minorias sem costura-las em um tecido homogêneo e coerente do nacional. Esses dois limites são fatais e são efeitos diretos da ausência do futuro no projeto pobrista do atual governo.

Lula não quer problema com os mercados, com a imprensa, com o funcionalismo público, com o centrão. A baliza de sua política é, outra vez, a de conciliações. Ele quer continuar contando com a fiscalização amigável ou tolerante da mídia e com a adesão fisiológica do Congresso. Não quer ferir interesses. Seus ministros podem brincar, uns de Rawls, outros de Foucault, enquanto ele viaja pelo mundo brincando de Mandela no palco dos conflitos alheios.

O custo disso tudo é alto, é a perda de uma oportunidade reconstrutora. Na ausência de um horizonte, de um rumo nacional, estamos nos acostumando a viver sem um projeto que dialogue com o futuro. Um projeto não fabrica um rumo, ele apenas reconhece um valor e define uma estratégia para a sua consecução. Na ausência de um projeto para o futuro, não somos capazes de unificar esforços individuais de forma inteligente no presente. Afinal, para que esforços não sejam envidados em vão, eles precisam de método, de justificativa, de hierarquia de objetivos e de organização, itens de empreendimentos coletivos planejados para médio e longo prazos. Na ausência da unidade mínima de visões e aspirações, vivemos de miudezas e distrações.

Esse é o saldo do governo Lula, um governo que parece empenhado em ser apenas uma introdução lúdica ao ato de governar. São quase seis meses desse quadro de miudezas e distrações introduzidas sob um ideário que prescreve ações políticas material e simbolicamente compensatórias. Será aceitável que um mandato presidencial inteiro seja tocado assim?