A Idade Média brasileira: indulgências intelectual e moral no séc. XXI

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Por Fernanda Sola – As descrições de um campo histórico pré-capitalista, a Idade Média, convergem com solidez para a imagem de três ordens: a dos que oram, lutam e trabalham. Essa é uma imagem de um mundo harmônico, onde a função de cada classe contribui para a existência e o bem estar das outras: clérigos contribuem para salvar as almas de nobres e servos, nobres protegem aos demais e os servos garantem a continuidade da vida material de todos.

Na grande narrativa histórica contemporânea, nossa Idade se inicia com a Revolução Francesa que, i. a., joga a cal virgem sobre os restos mortais da organização política em torno desses três estados; cadáver insepulto de uma época moribunda.

Não obstante, quando se vislumbra o governo brasileiro atual a visão é aterradora: um chefe aloucado conduzido e conduzindo os homens de armas e os homens de fé. Seria uma pantomima farsesca de circo mambembe não fosse parte da dura realidade. Mas, nessa montagem, onde estariam os provedores da vida material?

Quem respondeu “no agronegócio” acertou; é a classe detentora dos meios para sustentar fisicamente as outras duas. Quem disse “são os empresários” também acertou. Se você falou em trabalhador, enganou-se redondamente. Sim, aqueles que emprestam suas força e engenho para o sucesso dos processos produtivos são párias.

Mas há salvação: se o trabalhador não for empregado, mas um empreendedor, seu lugar no mundo (e numa espécie de céu weberiano) fica reservado. Daí a importância das redefinições.

Sim, essas redefinições são do mesmo tipo que transforma os carros velhos de “usados” em “seminovos”. É a magia transformadora de “demissões” em “oportunidades” (alguém mexeu no seu queijo?); dos vendedores de balas nos semáforos de “excluídos” em “empreendedores”.

Só que isso vai além de um embuste puro e simples. A coisa toda vem acompanhada dos piores vilões: (1) o Estado, que drena seus fundos e energias criativas para dar alimentar funcionários parasitas, (2) os comunistas, difamadores dos seus verdadeiros amigos: os patrões e capitalistas, afinal vocês são feitos da mesma substância, (3) a corrupção, escondida nos interstícios do Estado (afinal, só existe corrupto na estrutura pública, não é?), também devoradora de suas forças essenciais, (4) os bandidos, que desprezam os homens de farda e estão de olho naquilo que você conquistou única e exclusivamente por seu mérito… Para não alongar, alguns outros inimigos: (5) ele, o próprio inimigo, (6) políticos, (7) professores (8) cientistas, (9) LGBTQIA+, (10) macumbeiros, (11) qualquer ser humano que não seja da Bíblia, da bala e dos empreendedores: esses são os verdadeiros ladrões do seu queijo!!!

Com toda essa gente se locupletando, é difícil chegar ao lugar merecido. E o sujeito tem mérito e força de vontade mais que suficientes; errado está o mundo que não o deixa sair dessa vida medíocre. Por isso os fardados devem pô-los em seu devido lugar ou, inclusive, eliminar tais empecilhos.

Tudo isso é importante, pois a noção de provedor das condições materiais passou dos papéis de escravo, servo e assalariado para uma imagem unitária e indefinida, o já muitas vezes mencionado empreendedor.

Só para esclarecer: empresários recolhem o lucro, trabalhadores recebem salário, donos de fazenda recebem a renda da terra e capitalistas, o juro do capital. Isso mesmo: empresários e capitalistas são animais diferentes, como o pato e o leão.

Importante: quem pilota um carrinho de dogão não é capitalista ou empresário, pois vive de seu trabalho, não dos juros do capital ou da organização da empresa, respectivamente. Dirigir um carro para a Uber não transforma seu dono em alguém que vive de juros (esses, aliás, continuam indo para a financeira). A dura verdade é que trabalhar para si próprio não transforma ninguém em capitalista ou empresário, essa mudança depende de ter outros trabalhando para si. Ninguém sabe, exatamente, o que sustenta os empreendedores em geral; talvez a fantasia de ser empresário, talvez a expectativa muito elevada a respeito das próprias habilidades, talvez autocomiseração para não ter de encarar o fracasso.

Mas a ignorância é benção… Ao cabo, a construção ideológica da harmonia garantida pela reza e o chumbo se complementa pela equalização funcional de capitalistas, empresários e trabalhadores, todos unidos pelo bem geral. O setor agrícola segue a mesma lógica: produzir e exportar para ajudar a todos.

Isso faz sentido? Suponha-se, em hipótese selvagem, que governo e outros envolvidos nessa pantomima estejam agindo de boa fé e de forma consciente. Ainda assim, a construção não faz sentido.

As estruturas econômicas e sociais não são mais medievais. Faz tempo. O próprio funcionamento do mercado não se dá nessas bases. Smith defende a opção pela busca hedonista dos próprios interesses. A racionalização da produção com base em fatores precificados pressupõe a abstração do trabalho; o salário de um é o custo do outro, tudo expresso em valor pecuniário de troca. Sem isso o mercado não faz sentido. A dinâmica dos fluxos econômicos e a estrutura social associada à maneira capitalista de produzir não respondem à estrutura fé/armas/produção e, portanto, não respeitam seus limites e sua autoridade.

Assim, a organização da economia por meio de instituições estatais garantidoras do uso da força juridicamente controlado simplesmente não se encaixa na imagem ideológica dessa harmonia. Por outro lado, as formas de integração social mediadas pelo Estado tenderiam a buscar outros meios de consolidação; parte já está com as igrejas, parte com as irmandades armadas siamesas do tráfico e da milícia, parte se sente recebida pelo corporativismo castrense e assim por diante. Mas nada disso permite um funcionamento eficiente da economia.

A própria eficiência, buscada nas economias planejadas e pressupostas no mercado, se perde na pluralidade de lealdades e regras de circulação dessas entidades extra e paraestatais. A questão é se as formas de acumulação neste país conseguem suportar e sustentar tantos caciques e capitães do mato, inúmeros pedágios postos à circulação, ainda que não no sentido territorial, mas no da proteção para a circulação de riqueza.

Daí fica mais claro: a exploração dos recursos naturais, sobretudo mineração, e do agronegócio se estruturam em cadeias internacionais e atendem ao mercado interno só depois de haverem suprido os mercados dos países industrializados. Daí não tem muito problema. Já os inúmeros empreendedores do transporte (motoristas de Uber), do setor de alimentos (vendedores de brigadeiro feito em casa), da indústria da moda (costureiros de barras, botões e ajustes) e muitos outros tenderão a ficar à míngua.

Não há nada de integrador ou harmônico nessa versão moderna das classes medievais. Trata-se de um conservadorismo que não busca conservar – o que seria relativo a identificar aspectos positivos da vida atual e os manter contra mudanças deletérias; poderia ser reacionário, se houvesse alguma Revolução contra a qual reagir. Não é liberal ou neoliberal, porque propõe e implementa barreiras estruturais ao funcionamento do próprio mercado. Nada explica, nada passível de realização propõe.

No fim, resta apenas o sentimento de não ter os méritos reconhecidos, um país de 200 milhões (sim, se for descontada a elite indecentemente bilionária não muda a conta grossa da população) de gente empreendedora, merecedora e profundamente miserável, despida de capitais e de autocrítica. Mas com oração, proteção das armas e empreendedorismo tudo isso vai mudar, é só eliminar os comunistas e vender o patrimônio público…

Por Fernanda Sola