Haddad quer ser um populista sem povo

A imagem mostra Fernando Haddad cabisbaixo e um Lula atrás sorridente.
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Por Caio Gontijo – Gostaria de propor uma reflexão particular sobre o Brazil Conference 2021, no último sábado, que reuniu Ciro Gomes, Fernando Haddad, João Doria, Luciano Huck e Eduardo Leite. Pouparei a todos nós de uma recapitulação pormenorizada (de Leite e Huck, por exemplo, apenas consigo me lembrar das frases prontas liberais e os contidos sorrisos de satisfação da mediadora Eliane Cantanhêde, que me trouxeram de volta ao ensino fundamental, na lembrança do trato que uma diretora amarga reservava às crianças que a obedeciam sem questionar). Doria se saiu bem, é um bom debatedor, politizou em seu proveito as vacinas, e é mais forte para 2022 do que as pesquisas sugerem. Ciro se saiu muito bem também, obrigou aos presentes, ainda que implicitamente a concordar com pontos bastante mais profundos do que pareceram.

Mas reservo minha particularização a uma fala de Haddad, evidentemente reativa a Ciro, no que rebate a urgência de um Projeto Nacional que não pressuponha a participação do povo e fosse feito apenas por ‘esclarecidos’. Evidentemente, a seguir diz que o tal povo é composto dos estudantes que, é verdade, Haddad ajudou a colocar nas universidades quando da ocasião de seu ministério da educação – e que, ele implicitamente o sugere, o seguiriam a reboque.

Neste ponto, o apego ao tal povo é revelador (não ao povo em si, senão à noção implícita que faz do tal povo). Quando nada mais temos, ao que nos agarramos senão à projeção futura de nossos êxitos do passado? “Ademais, nosso problema (neste caso, o ilustre adversário) não é tão complicado assim, oras! No seu interior, ele falta substância e sua negação é algo trivial.” Assim é o fetichismo de Haddad com o tal povo e com o seu ‘popular’ que imagina existir e persistir. Mas o povo é algo complicado e afirmar sua direção, mais ainda (para complicar mais, há até aqueles que discordem que haja hoje qualquer coisa como um ‘povo’, quanto menos uma direção). Esse é o angustiante último momento (embora nele se possa permanecer para sempre) antes da descoberta de si mesmo como um populista sem povo, isto é, um falso populista.

Mas podemos conceder a Haddad a adição no termo: “Projeto Popular e Nacional de Desenvolvimento”. É uma trivial obviedade que isso é também o que queremos todos nós. Mas se a atividade política é esse puro voluntarismo da fala, deveríamos incluir nessa sucessão de termos, também, todos os nossos desejos e todas as diferentes formas de lutas. Na verdade mesmo, melhor seria substituir o PND pela Biblioteca de Babel, de Borges. Ou, não ter povo nem projeto.

Tenhamos clareza: o PND ainda não ‘tem’ o tal povo. Mas quem é que o tem? A disputa é outra; precisamente pelo senso comum. Para disputá-lo, é necessário opor-se aos clichês militantes (verba volant, como diria um velho vampiro). Isso não deve se confundir com mais do mesmo chamado por um ‘léxico’ inteiramente novo, nem afirmar fantasias. A tarefa é fazer com que nossas palavras e pensamentos se conectem organicamente ao senso comum para que o tal povo (do qual também fazemos parte, portanto também devemos nos reconhecer como tal), tenha a impressão de se tratar de algo que ele mesmo já havia pensado (ou algo similar), embora ainda não houvesse formalizado e externalizado de maneira coerente. Isto é, nesta sua manifestação real, nossas palavras se apresentam para o tal povo como uma coincidência.

Slavoj Žižek lembrou a Hegel, poucos dias atrás, ao lembrar que um líder (individual ou coletivo) nunca simplesmente ‘reflete’ um conteúdo substancial pré-existente a ele, a saber “a vontade do povo”. Mas o líder cria (é dizê-lo, numa reversão retroativa) ao povo como um agente político unido a partir de uma ‘bagunça’ de tendências inconsistentes e apenas aparentemente contrastantes. É o que fez Getúlio Vargas, cuja menção sempre causou horror aos falsos populistas, que muito orgulhosamente o difamam em alto e bom tom, apenas para esconder-se embaixo das cobertas quando desconfiam da presença de seu fantasma.

Por: Caio Gontijo.