A crise na Ucrânia e o desafio americano da bomba-dólar

A crise na Ucrânia e o desafio americano da bomba-dólar
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Por Fernando Silva Azevedo – Nos últimos dias, o mundo vem acompanhando com apreensão uma intensificação da crise geopolítica em torno da questão ucraniana. A Ucrânia se encontra espremida por duas forças, I) a oeste, por uma expansão da OTAN rumo a leste que já dura mais de duas décadas; II) a leste, por uma Rússia cada vez mais proativa na busca por defender seus interesses e segurança nacional. Com o aumento da tensão, se intensifica também a guerra de narrativas entre a OTAN, liderada pelos Estados Unidos (EUA) e a Rússia. As autoridades de Moscou alegam que se defendem de uma expansão irresponsável e desmedida da OTAN, que cada vez mais colocam tropas e bateria de mísseis perto das fronteiras russas. Por sua vez, os EUA e a OTAN alegam que essa expansão é uma resposta à crescente agressividade geopolítica da Rússia.

Em rigor, toda essa dinâmica geopolítica pode ser melhor entendida se resgatarmos os ensinamentos de autores que exploraram a ideia de contensão do poder terrestre russo, tais como Halford Mackinder, Nicholas Spykman e Zbigniew Brzezinski. Entretanto, a crise atual possui uma dimensão nova em relação aos ensinamentos desses três autores, a dinâmica financeira. Os EUA já afirmaram em diversas oportunidades que uma eventual invasão russa à Ucrânia será respondida com sanções econômicas, em especial, as de característica financeira. É nesse ponto que se encontra um grande desafio para os norte-americanos.

O uso da moeda como elemento de coerção não é uma novidade no campo da geopolítica¹. Mas foi após os atentados de 11 de setembro de 2001 que os EUA conseguiram instrumentalizar o dólar como um artefato bélico-financeiro de características sistêmicas, a bomba-dólar. Em outras palavras, o poder do dólar e sua centralidade na atual fase do capitalismo foi explorada por Washington para alcançar objetivos geopolíticos. Até o presente momento o uso mais intenso da bomba-dólar foi realizado contra o Irã, quando o Banco Central desse país foi proibido de utilizar o dólar e os demais atores tiveram que decidir entre utilizar essa divisa ou ter laços econômicos com Teerã.

A bomba-dólar foi uma combinação de três estratégias, negação do uso da moeda internacional, bloqueio de ativos e negação de acesso ao crédito nos mercados globais. No caso iraniano, a bomba-dólar ao “explodir” constrangeu o país a uma disciplina monetária dentro do regime financeiro internacional, gerando consequências econômicas relevantes, porém insuficientes para fazer Teerã mudar seu comportamento em relação ao desenvolvimento de seu programa nuclear.

A bomba-dólar tem um caráter sistêmico, uma vez que ela constrange todos os atores do sistema financeiro internacional a escolherem entre continuar usando o dólar em suas transações diárias ou possuir laços com o alvo em questão. Entretanto, a sua imposição é unilateral, pois só depende das autoridades de Washington. Essa arma evidenciou uma realidade difícil para muitos analistas internacionais, a moeda internacional não é um bem público global, ela é um instrumento de comando do país hegemônico.

Um elemento central na bomba-dólar é o sistema de mensagem interbancárias SWIFT que conecta mais de 11 mil instituições financeiras espalhadas por quase 200 países. Com um volume financeiro que ultrapassa os 6 trilhões de dólares por dia, o SWIFT é o coração da arquitetura financeira de um mundo globalizado. Mesmo sendo sediado na Bélgica, o SWIFT está sob as regras financeiras norte-americanas, uma vez que a imensa maioria das transações realizadas nesse sistema são denominadas em dólares.

Nessa crise em torno da Ucrânia, está sendo discutido uma resposta dos EUA à Rússia no campo financeiro e o uso da bomba-dólar, inclusive uma eventual exclusão das instituições financeiras russas de grande porte do SWIFT, está em pauta. É em torno do uso ou não da bomba-dólar que se encontra o maior desafio para os EUA. Como qualquer instrumento bélico, a bomba-dólar não é uma arma absoluta e definitiva. Um uso abusivo ou descuidado de uma arma tão poderosa pode minar a capacidade de coerção da própria arma. Isso pode ocorrer porque quanto mais os EUA instrumentalizarem sua moeda nacional como elemento de coerção internacional, mais os outros atores ficaram incentivados a buscarem alternativas, o que de fato já vem ocorrendo como consequências aos ataques financeiros contra o Irã. A própria Rússia, que já sofre algum nível de sanção como consequência tanto da construção do gasoduto Nord Stream 2, que liga diretamente a Rússia à Alemanha pelo Mar Báltico, quanto da crise na Ucrânia em 2014. Moscou já diminuiu sua exposição ao dólar ao aumentar suas reservas em ouro e ao iniciar o desenvolvimento de um sistema alternativo ao SWIFT, denominado System for Transfer of Financial Messages (SPFS). Além dessas iniciativas, Moscou já busca firmar acordos com Pequim sobre essa mesma questão das transferências internacionais.

Os desafios para os EUA não se encontram apenas no campo externo. Existe um comércio significativo entre Rússia e EUA por volta de 30 bilhões de dólares por ano². Um eventual uso da bomba-dólar contra Moscou por questões geopolíticas pode gerar descontentamento em setores internos que buscam apenas realizar seus negócios. Essa realidade é bem diferente do que ocorreu no caso iraniano. As sanções norte-americanas contra Teerã ocorrem desde 1979, portanto, os laços comerciais, produtivos e financeiros entre essas duas nações eram pequenos quando Washington decidiu lançar a bomba-dólar em 2012.

Uma eventual invasão russa à Ucrânia forçará os EUA a responderem. O uso das sanções financeiras localizadas contra membros do governo ou empresas específicas e, no limite, o uso da bomba-dólar são possíveis. A situação de Washington nesse tabuleiro não é confortável. Existe um risco que os custos sejam maiores do que os benefícios, o que pode ser contraproducente ao próprio poder monetário dos EUA a médio prazo. Atacar Moscou com a bomba-dólar é diferente do que atacar Teerã. Contra um adversário forte do ponto de vista geopolítico e com laços importantes na economia global, a bomba-dólar pode acabar sendo uma arma de destruição em massa que atinja até quem a lançou.

Por Fernando Silva Azevedo, economista, analista de Defesa, mestre e doutorando em Economia Política Internacional pela UFRJ e membro do Instituto da Brasilidade.

Notas
1) AZEVEDO, F. As duas dimensões da guerra financeira. Coleção Meira Mattos: revista das ciências militares, v. 15, n. 54, p. 253-272, 22 jun. 2021.

2) https://ustr.gov/countries-regions/europe-middle-east/russia-and-eurasia/russia