Futebol e política: o dia em que torcedores do Nueva Chicago foram presos por cantar a Marcha Peronista

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Na prateleira dos grandes estadistas latino-americanos do século XX, o general Juan Domingo Perón ocupa, sem dúvida alguma, um lugar de destaque. E o conjunto de sua trajetória, e de seus seguidores, na política argentina foi marcado pelos mais espetaculares e inusitados acontecimentos. O general, que ocupou a presidência do país entre 1946-1955 e 1973-1974, despertou tanto o amor incondicional das grandes massas populares argentinas quanto o profundo ódio de parte de suas elites.

Derrubado pelo golpe militar do general Lonardi – a chamada “Revolução Libertadora”, responsável pelo bombardeio à Casa Rosada e aos militantes peronistas na Plaza de Mayo em 1955 -, foi forçado ao exílio, do qual só retornou em 1972, voltando a ocupar a presidência argentina no ano seguinte. Ao longo desse extenso período em que esteve distante, estiveram proscritas não só as candidaturas de seus partidários, mas também o conjunto das manifestações simbólicas vinculadas ao movimento peronista.

Tão radical foi o processo de “desperonização” da Revolução Libertadora que durante a gestão do general Pedro Eugenio Aramburu chegou a proibir oficialmente que os nomes de Perón e de sua falecida esposa, Eva Perón, fossem citados pelos cidadãos argentinos, inclusive nos meios de comunicação (que passaram a se referir ao general como o “tirano”).

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O Decreto-Lei 4161, de 1956, proibiu que os nomes de Perón e Evita fossem citados pela população argentina.

Já após o falecimento de Perón, a mais sanguinária e entreguista ditadura militar argentina (1976-1983) igualmente adotou brutais medidas de repressão e proscrição contra o movimento peronista. Assim como ao longo da chamada “Resistência Peronista” (1955-1973), seus partidários tiveram de encontrar maneiras alternativas para driblar as imposições governistas, sendo os estádios de futebol um dos ambientes preferidos para a celebração de certos cultos “proibidos”.

No dia 24 de maio de 1981, se enfrentaram por uma partida das divisões inferiores do campeonato nacional as equipes do Nueva Chicago e do Defensores de Belgrano. A partida ocorreu no estádio República de Mataderos, situado no bairro de Mataderos, da periferia de Buenos Aires, um tradicional reduto das lutas sociais argentinas, marcado pela hegemonia do peronismo e pelo histórico episódio da tomada do Frigorífico Lisandro de la Torre, em 1959 (quando 9.000 trabalhadores tomaram o frigorífico para impedir que o governo de Arturo Frondizi o privatizasse).

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Mural na entrada do estádio República de Mataderos, situado no bairro dos frigoríficos e do Nueva Chicago.

O Nueva Chicago, também conhecido como o “torito” de Mataderos, brigava pelas primeiras posições do campeonato, pronto para retornar ao tão sonhado posto na Primeira Divisão, motivo suficiente para que o estádio estivesse completamente lotado. Em meio à partida, inesperadamente os torcedores do torito passaram a entoar a famosa, e então “proibida”, Marcha Peronista, um dos mais relevantes símbolos do movimento peronista, cuja versão mais famosa remonta àquela gravada por Hugo del Carril, em 1949.

A polícia interveio de imediato. Nada menos do que 49 torcedores do Chicago foram retirados das arquibancadas e levados até a delegacia nº 42, cerca de seis quadras distante do estádio. De lá, nove deles foram conduzidos até o presídio de Devoto, onde permaneceram por mais 30 dias.

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A fanática torcida do Nueva Chicago nos dias de hoje, lotando o estádio República de Mataderos.

Desde o começo da ditadura militar, em 1976, as torturas, sequestros e assassinatos marcaram o cotidiano da sociedade argentina, sustentando um regime que inibia toda e qualquer manifestação massiva em prol de ideais que não os seus. O ato dos torcedores do Chicago chamou as atenções da população e das autoridades, ficando marcado como uma das mais originais formas de manifestação utilizadas pelos argentinos durante o regime sangrento.

O ato heroico e inusitado dos torcedores trouxe sorte ao torito. A partida com o Defensores de Belgrano terminaria em 3 x 0 para o time de Mataderos. Duas semanas depois, no dia 7 de novembro, o Nueva Chicago bateria o Estudiantes de Caseros, também de Buenos Aires, pelo placar de 1 x 0, garantindo o retorno à Primeira Divisão.

Apesar do difícil momento político do país, Mataderos terminou o ano em festa. Do céu, Perón e Evita certamente brindaram o triunfo.

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A equipe titular do Nueva Chicago que garantiu o retorno do time de Mataderos à Primeira Divisão, em 1981.