A ‘legítima defesa da honra’ e as mulheres como sujeito de direitos

Por Juliana Leme Faleiros - O mês de março, exaustivamente celebrado como sendo das mulheres, iniciou, no Brasil de 2021, com a pandemia do coronavírus completamente fora do controle e com brasileiras e brasileiros ainda mais enlutados. Também iniciou com uma instigante decisão liminar concedida pelo Min. Dias Toffoli na ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 779 ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT).
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Por Juliana Leme Faleiros – O mês de março, exaustivamente celebrado como sendo das mulheres, iniciou, no Brasil de 2021, com a pandemia do coronavírus completamente fora do controle e com brasileiras e brasileiros ainda mais enlutados. Também iniciou com uma instigante decisão liminar concedida pelo Min. Dias Toffoli na ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 779 ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT).

Este tipo de ação tem cabimento nos casos em que há controvérsia relevante acerca de preceitos constitucionais a fim de evitar o comprometimento da segurança jurídica, dada a diversidade de decisões nas instâncias inferiores. O objeto central deste caso específico (ADPF 779) é definir, em tese e independentemente da existência de casos concretos, se “legítima defesa da honra” está em consonância ao disposto na Constituição da República haja vista que este argumento tem sido assaz utilizado para absolver réus nos crimes de feminicídio, consumados ou tentados.

Acatando a perspectiva apresentada pelo autor de que “legítima defesa da honra” – nestes exatos termos – não existe no ordenamento jurídico, o relator admite que a tese da legítima defesa da honra “tem sido utilizada para suscitar a excludente de ilicitude da legítima defesa nas hipóteses de feminicídio ou violência contra a mulher, ensejando a absolvição por esse fundamento.” Ou seja: a legítima defesa da honra tem tido uso para absolver réus envolvidos em crimes contra a vida de mulheres que, majoritariamente, são suas companheiras ou ex-companheiras.

A legítima defesa está inserida no Código Penal (CP), art. 23, II, assim como a honra, como bem jurídico penalmente tutelado (art. 138 e ss., CP). Dessa feita, analisando conjuntamente estes artigos, pode-se dizer que, aplicada a “legítima defesa da honra”, o Direito autoriza a agressão física, por exemplo, em resposta à ofensa da honra.

A agressão que, a princípio, configura prática delituosa, deixa de ser crime por ter sido praticada em determinadas condições, pois, ao lado da legítima defesa (art. 23, CP), o art. 25 estabelece os limites para que se faça uso da argumentação da legítima defesa, isto é, o CP também cria critérios para que o agredido/vítima (aquele que hipoteticamente tem sua honra ferida), que ao revidar/responder a agressão sofrida torna-se agressor (pois responde praticando conduta delituosa), se valha de tal preceito jurídico.

Destaca-se que, no referido artigo 25, para que seja admitida a legítima defesa é necessário o uso moderado dos meios para repelir a injusta agressão, atual ou iminente. Em síntese, o que o Direito permite é a prática de conduta criminosa para defender a si ou a outro desde que de forma comedida, ponderada, proporcional.

Em seu voto, o Min. Dias Toffoli faz interessante digressão sobre a tutela da honra no direito brasileiro, fortemente amparado em pesquisas estatísticas e acadêmicas como a de Marguerita Danielle Ramos, demonstrando a acomodação no decorrer histórico, desde o período colonial, de práticas machistas que foram sendo institucionalizadas e justapostas para, ao fim e ao cabo, surgir a “legítima defesa da honra” e proteger a honra dos homens.

O assassinato de Ângela Diniz por Doca Street em 1976 é exemplar para pensar sobre esse tema, pois, mesmo não tendo agido num rompante, no primeiro julgamento o réu foi absolvido sob o argumento da “legítima defesa da honra” enquanto Ângela Diniz foi para o banco dos réus, com sua vida esmiuçada, seu comportamento julgado e a responsabilização pela sua própria morte.

Não se esquece que a Constituição da República estatui a plenitude da defesa aos réus em crimes consumados ou tentados contra a vida, mas, é preciso dizer que, para além da evidente desproporcionalidade entre a honra e a vida, os crimes de feminicídio (consumados ou tentados), em regra, não são cometidos imediatamente após uma suposta agressão da honra (atual ou iminente, como prescreve a lei). E se fosse? Seria passível de excludente de ilicitude?

Mais uma vez, é necessário se debruçar sobre as pesquisas que demonstram os números assustadores de violência doméstica, especialmente, os crimes contra a vida das mulheres, bem como as condições em que tais crimes são cometidos: dentro de suas residências mulheres são espancadas, esfaqueadas, queimadas por vestir roupas consideradas inadequadas, não preparar o jantar no horário desejado, dentre tantos outros exemplos cotidianos oriundos de critérios estabelecidos pelo agressor.

Se dentre direitos fundamentais se usam os princípios da ponderação ou da proporcionalidade, é defensável dizer que há equação possível entre a honra dos homens e a vida ou a integridade física das mulheres?

Após a publicação da decisão do Min. Dias Toffoli, surgiram debates nas redes com opiniões emitidas por diversos juristas consagrados, alguns rejeitando e outros concordando. O que parece mais interessante, em verdade, é trazer o tema para o debate sob uma ótica feminista e concreta da realidade, reordenando conceitos tradicionais e vistos abstratamente, alheios à materialidade da vida.

Constatam-se diferenças sociais, econômicas, políticas e culturais na sociedade de hoje, século XXI, às do período colonial em que essa compreensão de honra foi sendo erigida. No entanto, sublinha-se que o velho se amoldou no novo, acomodou-se, atualizou-se. A legítima defesa da honra se configura na permanência do velho no novo e é sobre isso que importa se atentar.

A decisão liminar está para ser referendada, ou não, pelo tribunal pleno e convém acompanhar com lupa os argumentos desenvolvidos pelos demais Ministros uma vez que, dada a condição estrutural e estruturante da violência contra mulheres na sociedade brasileira, é assunto – ou deveria ser – de primeira ordem.

O mês de março é dedicado às mulheres e nessa oportunidade dispensa-se elogios e flores para convocar a todos à seriedade do debate acerca das condições das mulheres na sociedade brasileira. As perguntas que subjazem à ADPF, e que o STF deverá responder, circundam à condição de sujeito de direitos das mulheres e à possibilidade de manter um Judiciário cego às condições materiais da vida, reprodutor do “status quo”.

Por: Juliana Leme Faleiros.