Estar ao lado para conferir autonomia: a luta pelo fim da violência obstétrica

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Por Juliana Leme Faleiros – Em meados de dezembro de 2021, veio a público o áudio de influenciadora digital no qual ela relata a forma como foi tratada durante o parto de sua filha pelo obstetra, médico famoso da capital paulista. A conduta do médico tem sido classificada como violência obstétrica, ou seja, um conjunto de práticas que atentam contra a integridade física ou psíquica das mulheres e meninas em condição gravídica, parturiente ou puérpera. Desse episódio, outras mulheres trouxeram relatos por terem sofrido práticas violentas correlatas assim como apareceram relatos de abuso sexual praticados pelo mesmo médico. Todas essas condutas e violações estão sendo apuradas tanto pelo conselho profissional quanto pelas instituições do sistema de justiça.

Esse caso envolve figuras públicas, brancas e de alto poder aquisitivo e talvez por isso tenha tido grande repercussão – ambos se afastaram das redes sociais. No entanto, a violência obstétrica é velha conhecida, pois há tempos feministas têm se colocado em luta para impedir a sua continuação, destacando, no Brasil, a maior incidência em grupos de mulheres negras. Os insultos, como narrado pela influenciadora, são só um dos aspectos do conjunto de condutas que podem configurá-la, pois há, ainda, procedimentos adotados pelos profissionais de saúde como inadequação no atendimento pré-natal, a episiotomia e a manobra de Kristeller, estas últimas rejeitadas pelas pesquisas científicas, mas ainda diuturnamente praticadas.

Vale lembrar que em novembro de 2002, Alyne Pimentel, mulher jovem, grávida de seis meses, mãe de uma criança de 05 anos, negra e moradora da Baixada Fluminense, sentiu fortes dores abdominais e procurou a casa de saúde. Depois de uma série de condutas negligentes, de idas e vindas, de um parto de um feto morto malsucedido, Alyne faleceu. Pelo não atendimento e demais desdobramentos do caso, o Estado brasileiro foi levado ao Comitê sobre a Eliminação de Discriminação contra a Mulher (Comitê CEDAW) da Organização das Nações Unidas (ONU) sendo que, ao final do processo, o Comitê reconheceu que Alyne faleceu em razão da má prestação de serviço público em relação à sua condição gravídica e, desse modo, colocou o Brasil em situação de destaque como violador dos direitos humanos das mulheres, especialmente em relação à saúde e direitos sexuais e reprodutivos.

A violência obstétrica atinge qualquer mulher, mas, no Brasil atinge predominantemente mulheres como Alyne – jovem, de condição socioeconômica precária e negra, como apontado pela pesquisa de Kelly Diogo de Lima. Em 2018, o Ministério da Saúde divulgou informação de que mulheres pretas e pardas totalizaram 65% dos óbitos maternos no Brasil e, entre 1996 e 2018, aconteceram 38 mil mortes maternas sendo que, desse total, 67% em decorrência de causas obstétricas diretas, ou seja, negligência e imprudência no atendimento de mulheres e meninas durante a gestação, parto ou puerpério.

A violência obstétrica é reconhecida por lei na Argentina e na Venezuela, determinando, expressamente, a preservação da autonomia das mulheres e meninas em sua condição gravídica, parturiente ou puérpera e impedindo o abuso da medicalização e da patologização de processos naturais. Nestes países vizinhos, existe compromisso público pela humanização das mulheres durante esse período em defesa da liberdade delas de decidir sobre seus corpos e o livre exercício da sexualidade.

O Brasil, por sua vez, não assume essa forma de violência dentre as de práticas violentas contra as mulheres em nenhum instrumento legislativo. Ao contrário, em 2019, o Ministério da Saúde, pelo despacho SEI/MS – 9087621, colocou-se explicitamente contrário ao uso do termo. Em posição reacionária, o Ministério da Saúde do Brasil entende que “o termo ‘violência obstétrica’ tem conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado no continuum gestação-parto-puerpério.”

Em desalinho ao que estudiosas feministas tem defendido – e aqui vale referenciar a médica Melânia Amorim – o Brasil oficializa a negligência a uma forma de violência rotineira e de forte potencial ofensivo. As marcas deixadas tanto nos corpos quanto nas subjetividades das milhares de mulheres e meninas são quase irreversíveis.

É sempre bom lembrar que obstetrícia tem origem em “obstare”, algo como estar ao lado, estar junto. Obstetrícia não se relaciona – ou não deveria se relacionar – com o assujeitamento do outro, muito menos com práticas violentas. Desse modo, os profissionais da obstetrícia devem acompanhar as mulheres e meninas, conferindo autonomia e auxiliando num processo natural, tanto apoiando como orientando e prestando assistência em casos de intercorrência.

O episódio da influenciadora com o médico famoso, tragicamente, fez o tema da violência obstétrica circular nas redes sociais e nos meios de comunicação. Com isso, mais do que investigação e eventual punição, espera-se qualidade no debate, principalmente, em dois pontos principais: a necessidade de discuti-lo com recorte racial e a necessidade do reconhecimento da violência obstétrica para garantir efetividade aos direitos humanos de milhares de mulheres e meninas anônimas no Brasil.

Por: Juliana Leme Faleiros.
Doutora e mestra em Direito Político e Econômico (MACKENZIE). Especialista em Direito Constitucional (ESDC). Bacharela em Direito (UNIVEM) e Ciência Política (UNINTER). Advogada e professora.