Derrotar bolsonaro ou o Bolsonarismo?

Derrotar bolsonaro ou o Bolsonarismo
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Por Macell Cunha Leitão – Nenhuma certeza pode ser maior para o campo democrático e popular do que a necessidade de interromper a anomalia histórica representada pela ascensão de Bolsonaro ao poder. Para além de toda a carga simbólica da eleição pelo voto de alguém que defende a ditadura, a tortura e a opressão às minorias, seu governo é o pior de todos os mundos para quem se preocupa com o destino da nação, especialmente dos mais pobres:

1) Do ponto de vista econômico, Bolsonaro é a vitória sem peias da política neoliberal que vem há décadas desindustrializando o país, condenando o Brasil a ser o paraíso do rentismo e um mero exportador de commodities e, como tal, incapaz de fornecer uma condição digna de vida à imensa maioria do nosso povo. O entreguismo dos mais profundos interesses nacionais é feito à luz do dia em nome de uma postura vergonhosamente subserviente aos Estados Unidos da América. Não há, portanto, o mínimo horizonte de soberania no atual governo.

2) Do ponto de vista político, os últimos anos demonstram a desconstrução das pálidas conquistas institucionais obtidas desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. Em qualquer setor do governo que se analise – educação, saúde, cultura, justiça, meio ambiente, assistência social, direitos humanos etc. – temos notícias diárias de um fundamentalismo ideológico que desafia os estreitos limites dos avanços próprios à consolidação de um Estado Democrático de Direito. Ou seja, mesmo um liberal honesto, sem nenhuma inclinação à esquerda, é capaz de perceber a catástrofe na qual estamos inseridos!

3) Do ponto de vista que ouso chamar de “ético”, precisamos levar em consideração as ameaças concretas a uma sociabilidade aberta, plural e democrática. A preocupação com um retorno ao autoritarismo, tratada como histeria pelos incautos de sempre à época da campanha de 2018, apresenta-se a olho nu. Basta observarmos os projetos de lei encaminhados pelo governo e seus asseclas, as declarações frequentes de ameaça à estabilidade institucional e as semelhanças nada ocasionais com a estética e o discurso dos regimes fascistas vivenciados na Alemanha e na Itália. Para aqueles que ainda insistem em negar o risco democrático, sugiro que estudem os movimentos em curso atualmente em países como a Ucrânia e as Filipinas.

Por tudo isso, é urgente retirar Bolsonaro do governo. Uma perspectiva bastante plausível hoje, dada a rejeição de 60% do povo brasileiro. Contudo, a pressa em sair de uma situação que há poucos anos parecia impossível pode nos levar a não compreender a gravidade da crise. Mais do que um indivíduo que ocupa hoje o Palácio do Planalto, estamos diante de uma corrente significativa da opinião pública com ampla penetração social e influência decisiva em espaços significativos de poder na mídia, no sistema de justiça, nas corporações militares e em segmentos evangélicos. Além disso, o conservadorismo neoliberal e protofascista que o bolsonarismo representa tem correlatos igualmente relevantes na maior parte das democracias ocidentais, expressando que se trata de um movimento mais amplo que reflete o que poderíamos chamar de “ar dos tempos”.

Portanto, não basta acreditar que eleger outro presidente, ainda que à esquerda, seja a redenção dos anos terríveis de bolsonarismo que parecem não acabar. Quanto mais porque essa saída tem sido apontada de maneira acrítica como uma adesão sentimental e inquestionável à candidatura de Lula. A retórica dominante nos setores ligados aos interesses populares tem sido o de apoiá-lo imediatamente diante do seu resultado nas pesquisas eleitorais somado, em alguns casos, a uma defesa mítica e alienada dos anos de governo do Partido dos Trabalhadores. Ainda que o desejo de virar essa página infeliz da nossa história seja mais intenso do que nunca, a superação do bolsonarismo passa por entender as causas da tragédia em que nos encontramos, até para que não se repita como farsa.

Os anos de Lula e Dilma no governo foram marcados pela tentativa de conciliar uma política econômica neoliberal com medidas de redistribuição de renda que minorassem o drama da vida dos mais pobres. Nos 13 anos em que o PT ocupou o poder central em nosso país, não tivemos nenhuma reforma institucional profunda que sinalizasse uma mudança, ainda que mínima, no modo de fazer política e tampouco na estrutura produtiva do país. Os tons de vermelho do governo não mudam o fato fundamental: a continuidade do pacto social-liberal viabilizado juridicamente com a promulgação da Constituição dita “cidadã” e fundado, de fato, com o Plano Real.

Não existe um retorno tranquilo a esse pacto, que dá mostras suficientes de seus fracassos pelo menos desde as manifestações de 2013. A aparente bonança dos anos de Lula no governo atendeu a fatores externos que independem da vontade individual do mandatário de um país dependente e subdesenvolvido como o Brasil, de modo que o retorno da esquerda ao poder num momento como esse, sem uma revisão profunda e crítica do horizonte limitado e insuficiente do social-liberalismo, é a senha para uma vitória de Pirro que pode agravar ainda mais as condições dramáticas da democracia e dos direitos humanos em nosso país.

Por isso, não basta retirar Bolsonaro do poder para reeditar uma falsa conciliação de classes que, na prática, mantém intacto um sistema produtivo fincado no rentismo, na exportação de produtos de baixa densidade tecnológica e na desindustrialização do país. Ou, poderíamos dizer simplesmente, não basta derrotar Guedes para colocar no Ministério da Fazenda Meirelles, Lisboa, Levy, Trabuco etc. Ainda mais agora que a alternativa à direita atenta contra valores fundamentais da civilização ocidental.

Temos um desafio maior pela frente. O verdadeiro adversário histórico não é bolsonaro, mas sim o Bolsonarismo.

Macell Cunha Leitão

Professor universitário e Doutor em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.