O fantasma de 1964 e o ‘golpe militar’ de Bolsonaro

O fantasma de 1964 e o 'golpe militar' de Bolsonaro
SERGIO LIMA / AFP
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Por Daniel S. Kosinski – Passados dois dias do famigerado 7 de setembro de Jair Bolsonaro – que prometeu ao país uma verdadeira “tomada da Bastilha”, mas não entregou aos seus militantes mais do que velhas ameaças requentadas -, o que se observa é que o golpe militar de 1964 paira como um “fantasma” sobre a cabeça de certos comentaristas da conjuntura nacional.

Por exemplo, circula em redes sociais desde a última madrugada uma narrativa de que o golpe teria sido impedido por uma ligação feita pelo presidente do STF, Luiz Fux, aos comandantes militares, ameaçando convocar uma Garantia da Lei e da Ordem (GLO) em caso de ataque a edifícios governamentais na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Em rigor, o que tal história nos sugere é que essa ligação – milagrosa, devemos admitir – logrou abortar todo um suposto movimento militar já preparado e prestes a entrar em operação, de norte a sul e leste a oeste do país, em apoio ao presidente. E isso apenas porque, depois das palavras do ministro, os militares teriam se sentido “constrangidos” a acatar as ordens da instituição, precisamente, cujo funcionamento eles estariam prestes a interromper.

É compreensível que, diante do envolvimento de milhares de militares com a administração de um presidente de retórica abertamente golpista e do caos no qual o país se encontra, a repetição de um golpe seja motivo de temor. Todavia, precisamos analisar os fatos objetivamente, o que começa por não tratar 1964 como uma simples “quartelada” na qual, um belo dia, militares desgostosos com o governo resolveram tomar para si o poder e nele permaneceram pelos próximos 21 anos. Nenhum movimento dessa envergadura, num país com as nossas dimensões continentais e enorme complexidade social, é viável sem bases sociais que lhe deem sólida sustentação. Precisamos, então, analisar se o Brasil atual apresenta condições que viabilizem o sucesso de empreitada dessa natureza.

Conforme mapeado por René Armand Dreifuss em pesquisa documental de enorme fôlego publicada sob o título de 1964: A Conquista do Estado – ação política, poder e golpe de classe (Editora Vozes, 1981), o golpe militar desferido em 31 de março/1° de abril de 1964 não foi um “raio em dia de céu azul”, mas o ponto culminante de um movimento dotado de amplas bases sociais que já vinham se articulando, pelo menos, desde 1961.

Resumidamente, como Dreifuss revela, era ampla a capilaridade daquele movimento nos extratos superiores da sociedade civil brasileira. Já em 1963, segundo ele, o “capital multinacional e seus interesses associados” havia cerrado posição contra o governo e se articulava através das suas associações empresariais, organizando grupos
para a ação política. Nesse contexto, uma “campanha ideológica” de doutrinação “geral” e “específica” foi desencadeada através do rádio, da televisão, de filmes e até de cartuns. Por sua vez, grandes veículos midiáticos como os jornais Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e O Globo fomentavam o golpismo ao representar o governo de
João Goulart como agente promotor de “desordem” e “subversão”, patrocinada por forças estrangeiras. Nesse clima, já em 1964, as classes médias nas grandes cidades, em especial no Rio e em São Paulo, começaram a se manifestar em peso contra o governo nas conhecidas marchas “da Família com Deus pela Liberdade”.

Além disso, não podemos esquecer que o golpe de 1964 também teve o apoio de sólidas bases partidárias. A princípio, o núcleo das articulações foi a UDN, o grande partido de base antigetulista daquele período. Seus principais próceres, em especial Carlos Lacerda, “denunciavam” exaustivamente supostas tentativas de implantação de uma “república sindical” no Brasil e pregavam ações abertamente golpistas, pelo menos, desde a crise que levou ao suicídio de Getúlio Vargas em 24 de agosto de 1954.

Não obstante, pelos 10 anos seguintes, a UDN não conseguiu levar a cabo os seus planos. Isso só aconteceu quando, já em 1964, o PSD (o maior partido daquele período em termos de base parlamentar), apesar das suas raízes getulistas, aderiu ao movimento golpista. Em rigor, uma reação das suas bases predominantemente oligárquicas e
conservadoras contra João Goulart e o PTB, que embora também tivessem raízes getulistas, eram ligados ao ideário trabalhista e defendiam a valorização do salário mínimo (duplicado, de uma vez só, em 1954), o fortalecimento dos sindicatos e o aumento do poder de compra e do prestígio das classes trabalhadoras. Foi nesse contexto que o ex-presidente Juscelino Kubitschek, antigo aliado de João Goulart, se não apoiou abertamente o golpe, tampouco se opôs a ele, talvez sem imaginar que seria um dos primeiros a ter seus direitos políticos cassados pelo novo regime. Outra grande liderança pessedista e amigo íntimo de Juscelino, José Maria Alkmin, foi logo em seguida empossado como vice-presidente no governo do Gen. Castelo Branco, indicando o apoio da maior parte das elites partidárias ao movimento golpista.

Por outro lado, sob nenhuma hipótese podemos compreender o golpe de 1964 sem levarmos em conta o contexto internacional do período. Tratava-se do momento mais acirrado da Guerra Fria na América Latina, uma vez que a Revolução Cubana havia triunfado poucos anos antes, em 1959, e que a “crise dos mísseis” de outubro de 1962,
tendo Cuba como protagonista, mal havia arrefecido.

Havia, então, um ambiente de agitação latente no continente e amplo temor, por parte das elites dirigentes latino-americanas, de novas “defecções” para o campo comunista. Nesse contexto, as “Reformas de Base” propostas pelo PTB e por João Goulart, embora na sua inspiração e nos seus objetivos nada tivessem a ver com o comunismo, possuíam claros caracteres de emancipação popular e nacional e contavam com o apoio entusiasmado de boa parte das “esquerdas”. Por isso, e também por tudo aquilo que a figura de Jango representava em termos da herança política de Getúlio, seu governo foi alvo de oposição visceral das forças imperialistas e suas associadas.

Dessa forma, o golpe de 1964 teve amplo apoio externo, contando com farto patrocínio do governo dos Estados Unidos em diversas dimensões: apoio diplomático, recursos financeiros e presença militar, com direito ao posicionamento de uma frota americana diante do nosso litoral pronta para oferecer apoio logístico ao golpe ou, caso se mostrasse “necessário”, intervir no nosso território em seu apoio.

Em resumo, foram essas condições objetivas, internas e externas, que viabilizaram o golpe de 1964, que teve na ação militar “apenas” o seu derradeiro ou decisivo ato de força. Diante disso, precisamos perguntar: encontramos no Brasil de hoje cenário semelhante? Existem condições que viabilizem um golpe militar?

Não há dúvidas que partes substantivas do empresariado permanecem apoiando Bolsonaro. É o caso, principalmente, de setores do agronegócio exportador e de algumas grandes redes atacadistas, beneficiárias da devastação da legislação trabalhista e da compressão dos salários reais. Todavia, já estão evidentes fissuras significativas na sua base de apoio empresarial, conforme exemplificado pelo recente “manifesto” – cuja publicação foi suspensa na última hora, mas cujo teor veio à tona – assinado pela Febraban fazendo críticas diretas ao presidente, acusado de produzir incessante instabilidade institucional. Antes disso, em março, carta assinada por mais de 500 economistas, empresários, banqueiros e próceres do financismo, como o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan e os ex-presidentes do Banco Central Ilan Goldfajn e Armínio Fraga, já havia sinalizado nessa direção, fazendo duras críticas a Bolsonaro e exigindo “respeito”, “ciência” no combate à pandemia e “bom governo”.

Nesse momento, portanto, não identificamos no empresariado qualquer suporte majoritário ou generalizado a um golpe liderado por Bolsonaro.

No que diz respeito aos partidos políticos, se em 1964 dois dos três grandes deram
sustentação ao golpe, hoje temos um quadro de enorme dispersão parlamentar com nada menos de 30 partidos representados, apenas dois deles por mais de 50 deputados e 17 por menos de dez. Poucos desses partidos possuem identidades programáticas e demonstram coesão dos seus parlamentares em torno desses programas. No geral, vivemos num cenário de ampla fragmentação das elites partidárias, obstáculo significativo para a sustentação de qualquer governo, que dirá de um golpe.

Ademais, predominam nesse Congresso políticos profissionais, em sua maioria, mais orientados para a obtenção de cargos, verbas e benesses do que qualquer outra coisa. Hoje são os integrantes do chamado “centrão”, na prática, partícipes de todos os governos desde a promulgação da Constituição de 1988. Cabe então perguntamos, o que
os seus integrantes ganhariam apoiando um golpe militar? Que benefícios extrairiam da ruptura de uma ordem política representada como democrática se é justamente desse seu suposto caráter que extraem a sua legitimidade, enquanto “representantes do povo”, para agirem e continuarem agindo em causa própria?

Por isso, até o momento, à parte um punhado de deputados agitadores do bolsonarismo mais “radical”, não temos visto qualquer sinal de apoio de bases partidárias a um golpe, nem mesmo por parte de “aliados” do presidente. Não bastasse isso, é preciso lembrar que, desde novembro de 2019, Bolsonaro sequer está filiado a algum partido. No momento, não há um único que se sinta “obrigado”, por razões de valores ou lealdade, a defendê-lo.

No que diz respeito à mídia, pelo menos os grupos que contribuíram para a legitimação do golpe de 1964 vêm desempenhando papel diametralmente oposto.

Embora façam oposição diuturna ao governo Bolsonaro – muito mais pela sua incapacidade em avançar como gostariam a aprovação da agenda de reformas neoliberais -, não fazem quaisquer críticas ao regime dito democrático, mostrando-se coesos na sua defesa e veementes na condenação de qualquer tentativa de golpe. Sem o apoio dos meios hegemônicos para promover a sua causa, restam ao presidente veículos como a produção de conteúdos para compartilhamento em nichos nas redes sociais.

Finalmente, avaliemos o cenário internacional. Nesse caso, é cristalino o cenário amplamente desfavorável a qualquer pretensão golpista de Bolsonaro. Nos Estados Unidos, temos no governo de Joe Biden um agente francamente antagônico à extremadireita americana encarnada (e ainda liderada) pelo seu antecessor Donald Trump, diante do qual Bolsonaro demonstrou, durante dois anos, atitude de desavergonhada vassalagem. Quanto aos governos europeus, nenhum deles possui disposição e capacidade para apoiar qualquer golpe militar no Brasil, principalmente contra a
vontade dos americanos. Já quanto aos chineses, teriam algum interesse em apoiar um golpe bolsonarista depois das reiteradas agressões do presidente e de vários dos seus ministros e ideólogos ao seu país?

Inequivocamente, a situação de Bolsonaro, hoje, é de um isolamento praticamente absoluto nas relações internacionais. Não vislumbramos, assim, qualquer hipótese na qual obtivesse apoio externo para a sua empreitada, que dirá reconhecimento para a perpetuação inconstitucional do seu governo.

Em resumo, não parecem haver no Brasil atualmente condições objetivas mínimas, nem internas nem externas, para desencadear um golpe militar. Mas e quanto à posição dos próprios militares?

Em que pesem diversas manifestações públicas de alinhamento com Bolsonaro por parte de alguns dos seus comandantes, não vimos, até o momento, mais do que sugestões bastante veladas de apoio a uma ação extra-legal. Embora tais manifestações sejam inaceitáveis e tenham ficado vergonhosamente impunes, não houve, nas manifestações do dia 7, qualquer demonstração pública de apoio de militares às bravatas proferidas por Bolsonaro. Embora assombrosa para todos que amamos o Brasil, a participação de militares de todas as armas e de diversas patentes neste verdadeiro
antigoverno de destruição nacional não implica, por si só, endosso aos planos golpistas de Bolsonaro. Há uma distância considerável entre apoiá-lo em troca de cargos bem remunerados e posições de prestígio e poder e se responsabilizar por um golpe de Estado com bases sociais muito frágeis, para dizer o mínimo, e remotas possibilidades de apoio ou reconhecimento internacional.

Sem contar com suporte militar, o que sobraria para Bolsonaro? Um golpe liderado por policiais militares insubordinados? Por grupos de milicianos bolsonaristas? Para que tais movimentos prosperassem, os militares, muito melhor equipados e treinados, teriam que se omitir. Se o fizessem, reconheceriam a partilha do emprego da violência legítima no território nacional e concederiam a outras forças – até mesmo ilegais – a sua posição histórica de árbitros de última instância nos assuntos nacionais. Nesse caso, incorreriam em gravíssima perda de prestígio e status social, não havendo razões para crermos nisso exceto num caso de enorme fragilidade.

Portanto, pelas razões elencadas, não vemos quaisquer condições objetivas que antecedam ou preparem um golpe militar, ou mesmo paramilitar, no Brasil. Isso não quer dizer que estejamos em situação de tranquilidade, muito pelo contrário. Precisamos, porém, de um diagnóstico realista dos problemas que enfrentamos. O maio perigo que nos ronda hoje não é um golpe militar que Bolsonaro quer, mas aparenta estar longe de ter meios para conseguir. É o fato de sermos hoje um país absolutamente desgovernado, sem qualquer tipo de projeto de nação e cuja sociedade passa por claro processo de desagregação. À luz do dia e sem sofrer sanções, Bolsonaro promete descumprir decisões judiciais, questiona – sem provas – a lisura dos processos eleitorais, incita suas bases a se rebelarem contra os poderes constituídos do Estado brasileiro. Assim, abre, por exemplo, a possibilidade de que grupos “radicalizados” promovam ataques a órgãos e agentes públicos, atentados e atos de violência eleitoral.

Em rigor, são fatos como esses, e não um golpe militar fantasmagórico, que podem acabar nos colocando na rota de um conflito social de grandes proporções.

Por Daniel S. Kosinski, doutor em Economia Política Internacional (IE-UFRJ) e diretor do Instituto da Brasilidade.