A falência do etos socialdemocrata e o extremismo de direita

A falencia do etos socialdemocrata e o extremismo de direita
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A socialdemocracia faliu. Partidos, lideranças políticas, juristas e intelectuais sabem que o projeto de equilibrar a abertura dos mercados com um estado de bem-estar assegurado por um conjunto de instituições públicas voltadas a consagrar direitos fracassou. Esse fracasso acompanha uma amarga perplexidade: a de quem não sabe o que fazer com as sociedades ocidentais contemporâneas.

Mais do que um regime governamental ou uma diretriz de economia, a socialdemocracia é um etos político. A sua forma contemporânea começa com a constatação dos descaminhos experimentados no século XX: o socialismo real é inviável e o liberalismo puro é cruel. Factível e humana seria uma agenda social tocada por um Estado generoso sem ser egocêntrico: sensível aos efeitos da desigualdade produzidos pelo capitalismo, mas cônscio de sua incapacidade de interferir nas causas do modelo econômico.

Esse Estado seria orquestrado por um sistema jurídico centrado numa Constituição. E o conteúdo dessa Constituição sacramentaria a vocação incorrigivelmente social do Estado. O modelo inspirador estava na generosa Constituição de Weimar – vilipendiada, pouco tempo depois de promulgada, pelos nazistas.

O etos socialdemocrata reza que a atenuação das desigualdades venha por meio de programas e reformas eventuais que migre uma parte do PIB para políticas fiscais compensatórias. Confunde-se em seu exercício o atendimento às demandas condicionantes de uma realidade nacional, como saneamento básico, com demandas condicionadas, como acesso ao ensino superior, que, sublimadas no meio de uma lista de promessas de lastro silente, conferem à classe política a qualidade dos cínicos caridosos – o que é a própria porta de entrada para a corrupção e a venalidade como métodos. Mas as pessoas não aparentam almejar o que a abstração dos direitos anuncia e que mal lhes chega na forma de migalha. E, com isso, nem a conta fecha, nem os beneficiários saem satisfeitos.

Se a socialdemocracia já se revelava caloteira no crepúsculo da Guerra Fria, o século XXI ainda a fez piorar. É que desta vez o imaginário ocidental abrigou a corrente de opinião identitária, que, adaptada a cada realidade nacional enquanto defesa abstrata dos interesses de suas minorias políticas, vem imprimindo um moralismo metropolitano, cosmopolita e aburguesado, que se afina às promessas e migalhas socialdemocratas, mas que não entra em sintonia com o imaginário popular e profundo das nações.

A revolta contra o etos socialdemocrata e contra o imaginário identitário injeta não só plausibilidade como credibilidade em atores excêntricos como, entre outros, Donald Trump, Victor Orban, Jair Bolsonaro, Giorgia Meloni e agora Javier Milei. Exemplos dessa revolta estão em toda parte. Curioso é o caso da Assembleia Constituinte chilena que, após todo o apelo popular para enxotar a Previdência desenhada pelos colaboradores de Pinochet, deu mais de sessenta porcento ao “Rechazo”, em relação à proposta socialdemocrata e identitária que previa sistemas de justiça indígenas, igualdade de gênero e aborto. A derrota de Bolsonaro para Lula (com seu discurso do amor), após a gestão de uma pandemia com mais de setecentos mil mortos, foi com diferença de número de votos quase inexpressiva. De acordo com algumas pesquisas, Trump lidera as intenções de voto nos EUA. Lá, os Democratas vivem o drama de não serem capazes de eleger nacionalmente um político com discurso woke e não têm alternativa viável não-woke exceto a do octogenário que os preside.

Caracteriza as agendas desses extremistas de direita uma combinação de autenticidade, simplismo no trato dos problemas nacionais, performance anti-establishment e promessa de independência individual e familiar, que vêm costurados pelo enaltecimento da força, da pressa e da fé. Usam o cristianismo como mensagem de oposição ao mundanismo da política, das instituições e das leis e relativizam a importância da democracia como método de organização da coexistência nas sociedades ocidentais.

É claro que Milei, como outros, representa o cansaço da sociedade argentina em relação aos caminhos adotados por seus chefes de Estado peronistas. Mas esse cansaço veio agora com os sintomas da revolta contra o complexo indigesto do etos socialdemocrata com o identitarismo. Não adianta dizer que é triste ver uma sociedade educada e culta como a argentina optar por um personagem patológico. É preciso encarar com seriedade o esgarçamento do que o Ocidente, com suas instituições e sua política, se tornou. Isso interessa à Argentina, ao Brasil, aos EUA, à Itália e todos os demais países. Fomos sabotados por nós mesmos. Temos que reconhecer isso, para sair dessa.