A hipocrisia ESG e os conflitos internos da burguesia imperialista

A hipocrisia ESG e os conflitos internos da burguesia imperialista
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Larry Fink, CEO da maior gestora de ativos financeiros do mundo, a BlackRock, disse o óbvio em carta aberta para lideranças de grandes empresas: “ESG é capitalismo”. Por trás da novilíngua do financismo progressista, o que está em jogo é o destino do capitalismo mundial e as lutas internas da burguesia do Atlântico Norte, sobretudo a dissolução de sua quase secular frente ampla.

No jargão de Wall Street, ESG (pronunciada em inglês, í-esse-djí) é a sigla para “environmental, social and corporate governance”; em português, meio ambiente, social e “governança corporativa”, que é uma expressão mal traduzida do inglês e significa algo como combate à corrupção empresarial.

Já no pré-pandemia havia um verdadeiro furor marqueteiro com a difusão de indicadores í-esse-djí, a exigência de “práticas sustentáveis” (no plural, ao gosto dos pós-modernos) por parte de investidores institucionais e toda uma fixação em ações desconexas e pontuais que inflassem dados mostrando a “sustentabilidade” dos negócios apoiados por grandes fundos de investimento.

Há uma dupla faceta tragicômica de toda essa palhaçada midiática de Wall Street. Por um lado, revela a pura hipocrisia das planilhas de excel das finanças e suas variáveis í-esse-djí na luta contra a iminente catástrofe ambiental para a qual o mundo caminha. Para ficar num exemplo bem conhecido, enquanto a monarquia petrolífera da Noruega gosta de dar uma de “polícia ambiental” sobre a Amazônia brasileira, a planta da empresa norueguesa Alunorte cometeu um dos maiores crimes ambientais da história em território nacional em Barcarena, Pará.

Por outro lado, e de modo mais profundo, o que a í-esse-djí revela enquanto tenta ocultar é a dissolução da frente ampla burguesa surgida na Guerra Fria. Lenin em sua obra sobre o imperialismo criticava Kautsky porque o dirigente social-democrata alemão acreditava ser possível uma coordenação das diferentes burguesias nacionais em nível mundial, o que evitaria um conflito de proporções apocalípticas – Kautsky chamava essa coordenação de “ultraimperialismo”. As duas Guerras Mundiais mostraram que a refutação do caudilho eurasiático estava correta e essa coordenação não foi possível no início do século XX.

No entanto, a história em suas ironias fez com que as próprias ações de Lenin como líder da revolução bolchevique tornassem parcialmente corretas as previsões de Kautsky. As burguesias imperialistas tiveram de ser capazes de reestruturar sua hegemonia, ou corriam o risco de extinção frente à competição do mundo socialista e do Terceiro Mundo nacionalista e semi-consciente que explorava as contradições do Primeiro Mundo e o conflito entre URSS e EUA. E essa reconquista da hegemonia imperialista necessitava de sua coordenação mundial, patente em documentos como o GATT e instituições como o FMI e o Banco Mundial (mais tarde, os acordos de Basiléia e a OMC).

Foi um longo processo, que começa com o “pacto keynesiano” do imediato pós-guerra e se conclui com as reformas neoliberais iniciadas no choque do petróleo nos anos 70. É preciso ter em mente que esse colossal e complexíssimo processo ocorreu amiúde conflitos internos severos com idas e vindas e, como gostava de dizer Rangel, “preterintencionalmente”, isto é, não totalmente consciente ou planejado. Mas aconteceu.

A queda da URSS no natal de 1991 marca o auge dessa reestruturação da hegemonia do Atlântico Norte, fundamentada no ultraimperialismo e na frente ampla das burguesias imperialistas. Não poderia ser mais simbólico: a URSS era em parte a própria encarnação do resultado dos conflitos internos da burguesia central. Mas também foi o elemento opositor que engendrou a unificação das burguesias desconexas.

A partir dos anos 70, os países centrais passaram a enfrentar o fenômeno da estagflação, a combinação de inflação com falta de crescimento – que deixava claro que os estímulos fiscais de caráter keynesiano haviam atingido seu limite e não eram mais capazes de resolver as contradições da acumulação capitalista. O que permitiu resolver precariamente esse problema foi realocar o parque produtivo para os países asiáticos, principalmente China e Coreia do Sul. A China em particular explorou a Endaka, a política consciente de desindustrialização do Japão promovida pelos EUA a partir dos Acordos de Plaza, para capturar imensos pedaços da cadeia de valor global à custa do arquipélago vizinho, mas também das indústrias no próprio território estadunidense.

O subprime e a crise da zona do Euro uns 10 anos atrás mostraram os primeiros sinais que o arranjo ultraimperialista começava a atingir seus limites. A conversão das burguesias centrais em “cortadora de cupons”, na consagrada expressão de Lenin, tinha como correlato a virtual inutilidade de contingentes cada vez maiores das classes trabalhadoras dos países centrais. O “cinturão enferrujado” – nome dado à região dos EUA com grandes cidades industriais vítimas da desindustrialização onde campeiam o desemprego e o crime, como Detroit – elegeu Trump como forma recalcada da consciência dos limites das políticas neoliberais.

Mas o fenômeno do trumpismo não é só a consciência recalcada da decadência industrial dos EUA na classe trabalhadora estadunidense. O entorno de Trump congregava os elementos mais toscos da burguesia dos Estados Unidos: grandes varejistas destruídos pelo e-commerce, a indústria de óleo de xisto, uma parcela da indústria armamentista, da quase arrasada indústria automobilística estadunidense, agricultura, construção civil e outros setores (como os irmão Koch, que atuam em praticamente tudo). Basicamente, os setores da burguesia estadunidense que mais perderam com o neoliberalismo.

Do outro lado da trincheira dessa quase guerra civil nos EUA estavam as empresas do Vale do Silício (com a interessante exceção da Oracle), boa parte de Wall Street, indústria farmacêutica e o establishment midiático. Ou seja, os segmentos da elite estadunidense que triunfaram sob o signo das finanças. E foram esses setores que ganharam a contestadíssima (e quiçá roubada) eleição com Kamala Harris e seu boneco de pano, Biden.

O que a carta de Larry Fink implicitamente (e talvez explicitamente) diz é que a imensa força financeira da BlackRock será usada nos conflitos internos da burguesia estadunidense e de todos os países centrais. Desde táticas agressivas para tomar o controle de empresas (como o Hostile Take Over, e tantas outras) até o uso de fundos ativos e seus votos nos conselhos administrativos de colossais corporações que detém o coração econômico mundial.

Mas em seu arsenal há toda uma série de indicadores, variáveis e selos que são requisitos para o investimento de certos fundos (como os passivos) ou que são exigidos por investidores institucionais. Por exemplo, as famosas notas da Standard & Poor’s para a qualidade de “bom pagador” de empresas ou governos.

É aí que entra a í-esse-djí. Ao passar a exigir o uso desse tipo de indicador ligado ao politicamente correto, a BlackRock e outras aliadas de Wall Street podem colocar arreios nas grandes corporações, submetendo-as ao seu plano do que deverá ser o capitalismo mundial num futuro próximo. Junto de outras grandes gestoras de fundos, a BlackRock pode submeter até mesmo petroleiras antigas e poderosas, como fez recentemente na Exxon.

A questão da imagem pública das companhias é somente a espuma da superfície. Por meio desse tipo de instrumento, esses setores da burguesia podem efetivamente dobrar a resistência de setores mais fragilizados da elite, promovendo centralização de capital em cada vez menos empresas. Isso com ou sem poder do lobby sobre regulamentações – arma na mão dos conflitos intraburgueses.

Contudo, essa marcha triunfal das finanças í-esse-djí não acontece sem resistência por parte de outros setores das burguesias centrais. Se dentro dos Estados Unidos setores da elite descontentes com o império de Wall Street resistem organizando-se ao redor de Trump, outras burguesias nacionais dos países centrais também estão esgotadas.

É o caso da vulnerabilidade energética da Alemanha e sua crescente dependência em relação ao gás natural liquefeito oriundo dos EUA. Foi o desmonte das usinas nucleares alemãs que suscitou essa dependência – desmonte esse que aconteceu com todos os sintomas de uma guerra híbrida patrocinada a partir de Washington. Isso na Alemanha e não em um país de Terceiro Mundo. Na tentativa de contornar essa dependência, parte da burguesia alemã apoiou uma aproximação com a Rússia e o fornecimento de gás natural pelo gigante eurasiático por meio de um gasoduto através do Mar Báltico, que foi duramente vetado pelo recém empossado governo “de esquerda e moderno” da Alemanha. É exatamente esse o contexto do conflito na Ucrânia, como bem sintetizado por Fiori em artigo recente.

Os sinais de conflito entre e dentro das burguesias centrais são abundantes e demonstram que o arranjo ultraimperialista, em sua forma financeirizada após os anos 80, começam a atingir seu limite – o que coloca o conflito entre potências imperialistas novamente no horizonte. A França é outro país central que se desentendeu recentemente com os EUA, tanto na questão do fornecimento de submarinos para a Austrália como na consolidação do setor ferroviário (o FBI chegou a prender o CEO da francesa Alstom). O Brexit e os conflitos franco-italianos pelo espólio da Líbia destruída pelas potências europeias são outros episódios recentes dessa crescente animosidade.

O que isso significa para o Brasil e outros países do Terceiro Mundo?

Esses conflitos internos no centro do capitalismo mundial têm um significado ambíguo para o Terceiro Mundo. Por um lado, o que podemos esperar é o que sempre podemos esperar: mais imperialismo. Em um vídeo recente, o comandante Robinson Farinazzo mostrou que a OTAN pode usar justificativas ambientais para intervenção imperialista direta, por exemplo, na Amazônia. Além dessa atuação direta, indicadores í-esse-djí também podem ser empregados em barreiras protecionistas não-tarifárias contra nossas commodities, como volta e meia fazem sobretudo os países europeus. São também instrumentos para controlar subsidiárias de transnacionais instaladas no Brasil e dobrar nossa legislação econômica aos interesses imperialistas. A expansão imperialista é sempre o caminho de menor resistência para a resolução ainda que precária dos conflitos internos das burguesias centrais.

Por outro lado, foi nos momentos de conflito interimperialista mais agudo que o Brasil conseguiu se reinserir soberanamente explorando as contradições dos países centrais. Foi assim na Independência e na Revolução de 1930, quando aproveitamos o centro mundial engolfado em chamas para conquistar nossa soberania política e econômica. Temos mais uma vez a oportunidade de fazê-lo.

O que precisamos para isso? Pensar o Brasil pelo Brasil, e não por olhos estrangeiros, e organizar a nossa heterogênea classe trabalhadora para agir como um só sujeito em prol de nossa soberania.