A despolitização da desigualdade e o identitarismo

A despolitizacao da desigualdade e o identitarismo
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Por Roberto Dutra – A sociedade moderna é a primeira em que a desigualdade entre pessoas e coletividades é percebida como problema social. Nas sociedades pré-modernas, a desigualdade não era problema social nem político. Em muitas delas, como nas sociedades feudais, coloniais e de casta, a desigualdade era até mesmo afirmada como garantia de ordem e ajustamento cósmico. Apenas nas sociedades surgidas com as revoluções econômicas, políticas, jurídicas, educacionais e tecnológicas do final do século XVIII na Europa e na América do Norte, e que atingiram significado e escopo global a partir da segunda metade do século XIX, é que o valor da igualdade ganhou primazia sobre a desigualdade, servindo de fonte para o questionamento de assimetrias sociais em diversos contextos e lugares.

Como é possível que a vida social nos permita ver a desigualdade como um problema e não como garantia natural de ordem? A crítica e a problematização da desigualdade social do ponto de vista da justiça e igualdade pressupõem uma ordem social capaz de permitir a dissolução de estruturas de desigualdade sem que isso inviabilize a própria ordem social. Nem toda ordem social comporta a problematização e a mudança das estruturas de desigualdade social. Sociedades de pequeno porte territorial e demográfico, que dependem de características concretas e conhecidas de pessoas e populações para garantir relativa previsibilidade das práticas sociais cotidianas, dificilmente podem abrir mão de produzir e manter desigualdades duradouras e naturalizadas como fundamento da ordem social. A igualdade é uma abstração inventada pela evolução sociocultural que permite haver ordem sem que pessoas e populações sejam avaliadas o tempo todo com base em seus traços concretos. Sem a emergência de formas de participação na vida social que abstraem destes traços concretos não poderia haver igualdade em sociedades complexas, com crescentes diferenças reais e concretas entre as pessoas e coletividades. Essas formas abstratas de participação são aquelas criadas por sistemas sociais como a economia de mercado moderna (o empreendedor, o trabalhador), a política inclusiva moderna (o cidadão), o direito positivo (a personalidade jurídica), o ensino (o infante educável independente de sua origem) e, não menos importante, a filiação e a mobilização militar dos cidadãos.

No entanto, apesar do valor da igualdade se fazer presente na busca por inclusão nestas diferentes esferas da sociedade, é a partir de sua institucionalização na filiação militar nacionalmente generalizada, na política, no direito que a igualdade passa a servir de parâmetro para problematizar as assimetrias encontradas no acesso à educação, à saúde, à cultura e à segurança econômica. É somente como resultado de práticas e estruturas sociais específicas das esferas militares, política e jurídica (filiação militar generalizada, democracia e igualdade jurídica) que a desigualdade deixa de ser vista como um dado natural para ser percebida como um obstáculo à realização de objetivos sociais e individuais. A problematização jurídica e política da desigualdade é o resultado da diferenciação da sociedade em esferas sociais autônomas (economia, política, direito, esfera miliar, ciência, família, religião, artes etc.), que abre um horizonte de observação no qual assimetrias entre indivíduos e grupos sociais podem ser percebidas como contingentes e arbitrárias. No entanto, como demonstra o sociólogo do direito Chris Thornhill [1], não podemos perder de vista o nexo entre cidadania igualitária e filiação militar na articulação constitucional da ideia moderna de igualdade política e jurídica. A legitimação político-jurídica da igualdade se alimentou e ainda se alimenta decisivamente da participação militar em revoluções, movimentos anticoloniais e guerras civis e externas.

Como afirma o filósofo Michael Walzer [2], a igualdade moderna é complexa, pois não supõe a eliminação de toda e qualquer assimetria social, mas especificamente aquelas que se somam umas às outras e geram um processo de acumulação de vantagens e desvantagens que destroem a possibilidade de igualdade no acesso a um padrão de vida considerado “digno” e “civilizado” em cada contexto. A igualdade moderna não pode ser absoluta porque a sociedade não é uma unidade, mas uma pluralidade de esferas. É este tipo de igualdade complexa que chamamos de cidadania. Em sociedades estamentais como o sistema feudal e o colonial, havia uma unidade estrutural que bloqueava o horizonte comparativo e com isso contribuía para a legitimação não problemática da desigualdade. Em sua clássica sociologia da cidadania, o sociólogo Thomas H. Marshall [3] vincula o desenvolvimento da busca por igualdade à superação desta unidade estrutural característica de sociedades estamentais e à diferenciação da sociedade em instituições funcionalmente especializadas. Em sociedades feudais, afirma, “não havia nenhum princípio sobre a igualdade dos cidadãos para contrastar com o princípio de desigualdade de classes” (Marshall, 1967, p. 64). O mesmo vale para outras formas de desigualdade como as de gênero e raça/etnia.

Tudo isso significa que a primazia valorativa da igualdade enquanto horizonte que condiciona a problematização da desigualdade não é um dado. Muitos autores levantam a hipótese da possível formação de uma sociedade “neofeudal”, marcada pela eliminação deste horizonte igualitário em esferas como o direito e a política, fazendo surgir novas estruturas sociais capazes de suprimir a diferenciação da sociedade em esferas e de concentrar de modo naturalizado o acesso aos recursos sociais. A desigualdade pode deixar de ser um problema para se tornar novamente um dado natural. Esta hipótese não deve tratada como uma tendência inexorável, mas sim como uma possibilidade evolutiva. O aumento vertiginoso das desigualdades econômicas, os obstáculos à superação de desigualdades raciais, étnicas e de gênero em diferentes esferas sociais e a fragilidade institucional dos direitos igualitários de cidadania são fenômenos que apontam justamente para a possibilidade de desconstrução do horizonte normativo e cognitivo da igualdade e da consequente renaturalização das assimetrias sociais dos mais diversos tipos.

A gramática moderna da igualdade é abstrata e quando se restringiu ao seu aspecto formal nunca foi capaz de contribuir diretamente para a implantação de alguma igualdade significativa no acesso aos bens e recursos sociais. Foram certas dinâmicas e lutas políticas que, problematizando a contradição entre igualdade formal e desigualdades materiais concretas da economia e da educação, puseram em marcha processos de ampliação da cidadania e da igualdade. Os grupos particulares que buscavam direitos sociais e trabalhistas foram capazes de forjar um universalismo novo, mais complexo, capaz de incluir excluídos. O mesmo aconteceu com movimentos feministas e antirracistas no século XX em suas lutas políticas por cidadania. Para isso, não se podia abrir mão da abstração universalista e de suas instituições como a democracia e a igualdade de direitos. No contexto em que corremos o risco de perder a capacidade cognitiva e normativa de problematizar e politizar as desigualdades, a gramática do identitarismo é um obstáculo adicional: ao firmar de modo essencialista e exclusivista o primado de identidades particulares, e negando com isso todo tipo de universalismo, a “política identitária” ensina a abrir mão daquilo que é necessário para problematizar a desigualdade e produzir um nível significativo de igualdade social. Não se trata de responsabilizar o identitarismo por tudo. Certamente existem fatores muito mais importantes para explicar a despolitização da desigualdade. Mas não se pode negar a importância da política e de sua autonomia em produzir e desdobrar artefatos sociais abstratos como a igualdade e cidadania. Ocorre que o identitarismo, desconhecendo que suas identidades são também artificiais e contingentes, bloqueia esta capacidade inventiva e imaginativa da política em produzir identificações coletivas mais amplas e abstratas. O dano causado pelo identitarismo não reside apenas em sua ênfase unilateral no moralismo exclusivista e na redução da política à performance discursiva, mas sim em sua negação da possibilidade de discursos universalistas sem os quais tanto a igualdade quanto a problematização da desigualdade somem do horizonte sociocultural e político. Por isso, o identitarismo é sim parte da despolitização da desigualdade. É falsa política que não contribui para problematizar e transformar as desigualdades que impedem a realização e universalização de uma vida “digna” e “civilizada”.

Por Roberto Dutra

Sociólogo e professor da UENF

[1] THORNHILL, Chrs (2018). Historical Sociology and the Antinomies of Constitutional Democracy: Notes on a Revised Approach. InterDisciplines v, 9, n. 2, p. 31-55 (hornhillhttps://www.interdisciplines.org/index.php/indi/article/view/1076)

[2] WALZER, Michael (1983). Spheres of justice. A defense of pluralism and equality. Nova Iorque: Basic Books.

[3] MARSHALL, Thomas H. (1967). Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar Editores.