Haiti: 230 anos da 1ª Assembleia pela Liberdade dos/as Negros/as

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Por Waleska Miguel Batista e Frantz Rousseau Déus – “O Deus que cria o sol […]. O Bom Deus que está no céu olha para nós. Ele vê o que os brancos fazem. O Deus dos brancos recomenda o crime, o nosso solicita o bem. Mas, o nosso bom Deus nos ordena à vingança. Ele vai conduzir nossos braços e ele vai dar-nos à assistência. Quebrem a imagem do Deus dos brancos que está com nossas lágrimas; ouçam em nós mesmos o apelo da liberdade’’ (PRICE-MARS, 1928, p. 54).

Esta é a oração conduzida pelo sacerdote de vodou, Boukman Duty, na assembleia político-religiosa revolucionária, conhecida como cerimônia do Bois-Caïman, que aconteceu na habitação Lenormand de Mezi, localizada na região norte do Haiti, em 14 de agosto de 1791.

Completou-se 230 anos desde que aconteceu esse ato político que consideramos como ponto de partida oficial da luta pela liberdade das pessoas negras escravizadas nas Américas. Lutas sucessivas e lideradas por diversas figuras revolucionárias conduziram à Independência do Haiti. Desse modo, conforme salienta o poeta martinicano Aimé Césaire, o Haiti é “o lugar onde a negritude se levantou de pé pela primeira vez” desde a implantação do sistema colonial-escravista (CÉSAIRE, 1983, p.6).

O Haiti é um país localizado a leste da ilha caribenha, ao lado da República Dominicana (ambos formavam a antiga colônia de São Domingos), tendo sido o primeiro país da América Latina a conquistar à independência, proclamada em 1º de janeiro de 1804 pelo imperador Jean Jacques Dessalines. A Revolução Haitiana serviu de inspiração para muitas lutas pela liberdade, como para os/as negros/as escravizados/as no Brasil e nos Estados Unidos, pois foram os/as escravizados/as haitianos/as que se revoltaram contra os brancos colonizadores franceses, venceram o exército de Napoleão e conquistaram à liberdade com o preço de sangue.

Parte dessa luta aconteceu porque eclodiu a Revolução Francesa (1789) em favor da Igualdade, Liberdade e Fraternidade, porém esses princípios não se aplicavam as colônias francesas, tampouco às pessoas negras. Os franceses não tinham interesse em libertar as colônias, uma vez que elas proporcionavam o enriquecimento e crescimento industrial. As teorias racistas também justificavam a exploração de corpos e braços daqueles/as que eram considerados inferiores por motivos religiosos e pseudocientíficos, segundo os autores naturalistas e eugenistas.

A colônia de São Domingos era uma das principais produtoras de açúcar e café enviados à Europa, porém após a Revolução Haitiana, que a levou à independência, todos os pactos comerciais com o país que passou a ser chamado de Haiti foram rompidos. Os argumentos utilizados para esta atitude eram o medo dos franceses invadirem seus territórios e de que os haitianos instigassem a revolta dos negros em outros lugares – este era o pensamento comum.
Após a independência, o Haiti teve de enfrentar muitos problemas, desde o pagamento de 150 milhões de franco (moeda da época, que equivaleria hoje a 28 bilhões de dólares) ao Rei Carlos X, da França, em 1825, para o reconhecimento da sua independência até o isolamento econômico. Também os Estados Unidos da América (EUA) que eram independentes desde 1776 foram reconhecer a independência do Haiti apenas em 1862, durante o governo do presidente Abraham Lincoln.

Enquanto filósofos europeus (progressistas e conservadores) bebiam seus deliciosos cafés com açúcar produzidos nas colônias através de sangue e suor de escravizados/as, o Haiti estava lutando para que a liberdade deixasse de ser um conceito vazio. O compromisso em favor da liberdade a todos e todas sempre esteve no horizonte revolucionário haitiano.

Desta forma, foram enviados pelos chefes de Estado haitiano dinheiro, soldados, armas e munições para apoiar expedições revolucionárias visando libertar os povos em vários territórios da América Latina. A título de exemplo, podemos destacar os seguintes apoios: Francisco Miranda em 1806 (Venezuela); Francisco Mina (México) e Simon Bolivar (Venezuela) em 1816. A única condição que os chefes de Estado haitiano colocaram era para libertar as pessoas escravizadas em todos os territórios conquistados das mãos dos colonizadores europeus. Todavia, durante o congresso dos países independentes da América realizado no Panama, em 1826, idealizado por Simon Bolivar, o Haiti não foi convidado (LEONARD, 2003, p. 213).

Mesmo depois do reconhecimento da sua independência, o Haiti continua até os dias de hoje a ser tratado com desprezo pelos países do mundo, inclusive, latino-americanos. Apesar disso, o povo haitiano reivindica a materialização do conceito de liberdade presente na Constituição Haitiana de 1987 e respeito por essa nação.

Paradoxalmente, após a valiosa conquista dos/as antigos/as escravizados/as, os governantes do Haiti não chegaram a construir um Estado que se afaste das lógicas de dominação colonialista. Eles se organizaram de forma a reproduzir a ideia de Estado existente em outros países como a França e os Estados Unidos, construindo, segundo o antropólogo haitiano, Michel-Rolph Trouillot, um Estado predatório que atua contra a nação haitiana, e que não promove condições efetivas de cidadania (TROUILLOT, 1990). O Estado haitiano e a burguesia haitiana seguem os caminhos de acúmulo de riqueza, definindo a hierarquização das pessoas por classe, raça e gênero.

Outro paradoxo encontrado na sociedade haitiana se manifesta em uma amálgama da classe e raça, racializando os lugares por meio da epidermização da pobreza. As elites econômicas e políticas constituída por pretos e pardos – negros e mulatos no Haiti – estão sempre numa luta entre si para ver qual conseguirá explorar mais a massa da população. Assim, a tecnologia da raça e de classe é usada para a reprodução da estratificação social e econômica.
As atitudes apontadas vão em sentido contrário aos objetivos norteadores dessa nação, uma vez que o “Haiti surgiu para ‘reabilitar’ a raça negra diante dos males da escravização e da colonização ocidental” (DE VASTEY, 1814; FIRMIN, 1885; PRICE, 1893).

A lógica desigual, essência do capitalismo, continua a alimentar as tenções sociais no país, servindo de pretexto para que outros países usem do racismo para manter o Haiti na desvantagem, a ponto de sequer dar a mesma importância a produção cultural e intelectual dos/as haitianos/as. Para além disso, normaliza a ideia de que no Haiti não tem nada de bom, apenas violências e catástrofes naturais. E, a mídia internacional, nem sequer olha pelas dinâmicas sociopolíticas e culturais internas, mas sempre estão esperando um acontecimento catastrófico para ligar seu projetor sobre esse país com a finalidade de poder falar do excepcionalismo haitiano, ou seja, do Haiti como um país sem história, sem cultura e miserável, resumindo-o de forma enfática a simples frase: “o mais pobre das Américas”.

Passados os 230 anos desde a cerimônia do Bois Caïman, quer dizer, da assembleia que colocou um basta às violências coloniais-escravistas e às teses sustentadas pelos grandes filósofos que enchem nossos currículos escolares e universitários, torna-se fundamental ao povo haitiano (re)pensar sua presença no mundo e como (re)organizar as estruturas sociais. Para além disso, as pessoas progressistas dos países que têm relação com o Haiti deveriam, no mínimo, olhar às práticas racistas existentes nas relações diplomáticas que seus dirigentes estabelecem não somente com o Haiti, assim como com outros países negros.

A liberdade é uma luta constante, motivo pelo qual o apelo lançado em 14 de agosto de 1791 continua válido. Lutemos pela Liberdade!

Referências
CÉSAIRE, Aimé. Cahier d’un retour au pays natal. Editions Présence Africaine, 1983.
DE VASTEY, Baron. Le systeme colonial devoilé. Cap-Henry: P. Roux, 1814.
FIRMIN, Anténor. De L’égalité des races humaines. Paris: Librairie Cotillon, 1885.
LÉONARD, Rose-Mie. L’indépendance d’Haïti perceptions aux États-Unis, 1804-1864. In: Outre-mers, tome 90, n°340-341, 2esemestre 2003.
PRICE, Hannibal. De la Réhabilitation de la Race Noire par la République d’Haïti. Port-au-Prince: Les Editions Fardin, 1898.
PRICE-MARS, Jean. Ainsi Parla l’Oncle: Essais d’Ethnographie. New York: Parapsychology foundation, Inc., 1928.
TROUILLOT, M.-R. Haiti, state against nation: the origins and legacy of Duvalierism.
New York: Monthly Review, 1990.

Por Waleska Miguel Batista, Doutoranda em Direito Político e Econômico pela Mackenzie, Mestra em Sustentabilidade e Graduada em Direito Pela PUC-Campinas. Integra o Grupo de Pesquisa Estado e Direito no Pensamento Social Brasileiro, vinculado ao Mackenzie. Advogada e Professora Universitária.

E Frantz Rousseau Déus, Doutorando em Sociologia pela UNICAMP, Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo. Licenciado em Ciência Sociais, Bacharel em Sociologia, Antropologia e Ciência Política pela UNICAMP. Autor do livro “Paradoxo Haitiano: identidade Negra e ‘branqueamento’ na contemporaneidade”.