De que vale o voto periférico?

De que vale o voto periférico
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O que se vive atualmente, no Brasil e no mundo, é um abismo do individualismo. As facilidades de conectividade maximizadas neste século serviram como força motriz para esse fenômeno. Além do foco em produtividade individualizada (seja em que setor da vida for: formação educacional; emprego e carreira; saúde e esporte; enriquecimento e patrimônio; empreendedorismo), aceleração do tempo, e conexão (instantânea) com o mundo, houve, também, um desprendimento com o sentido de coletivo.

Isso revela, para a maioria das pessoas, que o sucesso (seja qual for a definição de sucesso) é medido pelas conquistas individuais. Um puro estado de felicidade relativo à conquista individual pode abrir exceções: podemos ficar extremamente felizes por conquistas de pessoas próximas, como se as conquistas fossem nossas. Contudo, a exceção não gera uma mudança real da ideia da conquista individual.

O maior reflexo dessa postura individualista (que é guiada por uma hegemonia) ocorre na forma institucional de fazer política. Ainda que tenhamos a sorte de estar em um país com aparência democrática (ou cuja legalidade busca se mostrar como democrática), as posturas são segmentadas e segmentárias. Não se trata, porém, de uma exclusividade brasileira. Como exemplo, é importante lembrar que as eleições colombianas de 2022 – mesmo tendo a maior participação de eleitores desde o ano de 1998 – tiveram uma abstenção de mais de 45% dos eleitores. Embora seja um percentual alto, devemos destacar que não há obrigatoriedade de voto na Colômbia; enquanto, no Brasil (onde o voto é obrigatório), houve mais de 20% de abstenção em 2018 e, dos que foram votar no segundo turno, quase 10% não optou por nenhum dos candidatos.

A alta abstenção pode ser vista tanto como uma negação aos projetos dos candidatos, quanto como uma rejeição da política institucional (ou até mesmo da própria democracia). Não seria de se estranhar se, como conclusão de uma eventual pesquisa, o resultado maior dentre as duas hipóteses fosse a de rejeição à política institucional. Isso seria normal no ambiente político (formal e informal) brasileiro, pois, as motivações de votos são quase em sua totalidade individualistas.

Sem cientificidade ou pesquisa, ao questionar a alguém próximo (não tão envolvido politicamente) qual a razão para que vote em um determinado candidato, as respostas mais comuns são porque o/a candidato/a prometera fazer algo em específico por aquela pessoa. Não se busca melhorar as condições sociais e econômicas (lembrando que estas estão dentro daquelas) em nível geral, mas basta que “o político” melhore a vida de uma única pessoa, ou assim o prometa. Nota se uma desconexão política de inúmeros indivíduos (e a culpa é de como se faz política e de quem faz política, e não do indivíduo). Não por outro motivo, há compra ou tentativa de compra de votos em todas as eleições brasileiras.

As motivações pessoais não se restringem unicamente aos indivíduos que, por qualquer motivo, não participam da política (institucional ou não). Basta relembrar as infames declarações de votos dos deputados federais para o início do julgamento político da Presidente Dilma Rousseff (PT) em 2016 (eu, particularmente, lembro muito claramente do voto “pelos corretores de seguro”).

Há, contudo, uma grande distinção entre as consequências das motivações pessoais dos “políticos profissionais” para aqueles eleitores que não participam da política ou de movimentos políticos. Esses eleitores às vezes ganham aquilo que lhe foi prometido, mas na maioria das vezes apenas ouvem promessas vazias. Os eleitos, quando buscam motivações pessoais, recebem recompensas extremamente valiosas.

É justamente por motivações pessoais que ocorrem casos de corrupção, ou “readequação de prioridades” dos políticos. A utilização de verba pública para projetos pessoais é sempre muito desejada por parlamentares, havendo um crescimento de cerca de 300% nos valores empenhados e pagos em emendas parlamentares na comparação dos anos de 2018 e 2021. Apesar disso, foi também em 2021 que o Brasil passou a conhecer o chamado “orçamento secreto”, através do qual os parlamentares do Congresso Nacional poderiam receber valores e (diferentemente das emendas parlamentares) destiná-los sem identificar ou justificar seu uso. Em função disso, houve apoio em diversas medidas propostas pelo Executivo federal.

Sem dúvidas, os desvios da classe política para proveitos pessoais não se restringem ao Parlamento. Basta lembrarmos que o mais novo escândalo de corrupção que, neste mês de junho levou à prisão o ex-Ministro da Educação, Milton Ribeiro, foi a negociação da destinação de verbas do MEC para prefeituras por pastores com intuito de desvios dos valores.

Além da verba utilizada para finalidade privada ser pública, os mandatos a partir dos quais os desvios acontecem também o são. Um grande passo que se imaginava contra os desvios foi a proibição de doações de pessoas jurídicas para campanhas políticas. As pessoas jurídicas, certamente, têm interesses (legítimos ou não) na democracia ampla e restritamente. Amplamente, o interesse das pessoas jurídicas é no controle institucional (inclusive da concorrência), segurança jurídica e previsibilidade econômica (coisas difíceis de se garantir em governos totalitários); restritamente, podem trocar valores por apoio dos mandatários aos seus projetos privados.

Não era (e ainda não é, mesmo após a proibição de doações de pessoas jurídicas às campanhas) raro ver políticas estatais que favorecem oligopólios e setores econômicos, em detrimento de garantias ou direitos constitucionais, bem como em detrimento do povo. Trata se da troca de mandatos públicos por interesses privados, mesmo sem doações das pessoas jurídicas (seus abastados sócios, diretores, controladores podem, democraticamente, doar polpudos valores dentro do rigor legal, além de manter uma proximidade mais que republicana). É uma lógica que se perpetua na maioria da política institucional.

Não por outro motivo, não há constrangimento no atual governo (2019-2022) em manter gastos elevados no cartão corporativo, enquanto o povo passa fome (muito por conta de ausência de políticas públicas e de políticas econômicas efetivas). Apenas para colocar em números, foram gastos 21 milhões de reais em dois anos , com aumento de 736,6 mil reais por mês em 2019 para 1,2 milhões de reais em 2022, sendo 16,5 milhões de reais apenas com viagens. Ao mesmo tempo, houve a volta do Brasil ao Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para Alimentação e a Agricultura – FAO , e a constatação de que 33 milhões de pessoas passam fome no país e 58,7% da população passam vive com insegurança alimentar.

Porém, a política (mesmo a institucional) não se restringe às atitudes individualistas ou egoístas. Nas últimas eleições, puderam ser vistas mobilizações inovadoras como mandatos coletivos e um aumento das eleições de pessoas consideradas periféricas, seja nos parlamentos estaduais, seja nos municipais. O acesso ao parlamento nacional, porém, foi cooptado por um grupo político cuja organização eletrônica internacional e o discurso populista levaram grande parte da população a crer que havia soluções simplistas e fáceis para os difíceis e complexos problemas nacionais. Ainda, é necessário lembrar que as forças políticas tradicionais mantém o controle institucional e farão grande esforço para que as inovações percam sua voz e seu espaço e, na maioria das vezes, vão conseguir.

Não fosse a cooptação de ideias, narrativas e votos – necessária para as elites, inclusive (e talvez principalmente) aquelas que controlam o setor midiático –, todas em favor da ideologia que mantém o status quo, seria difícil compreender como os (mesmos) políticos que favorecem empresas em detrimento do povo continuam a ser eleitos. Esquecendo se a disputa de personalidades (o verdadeiro freak show ou concurso de popularidade) que por vezes se tornou as eleições para Executivo (em qualquer das três esferas), devemos nos questionar como um país que teve (em sua melhor época econômica recente) 92% da sua população considerada como a soma da classe média com a classe baixa pôde eleger majoritariamente políticos que favorecem os outros 8% (quando muito, pois normalmente, favorecem menos do que o 1% do topo).

Nem mesmo o retrocesso que fez, de 2011 a 2021, a suposta “elite” passar de 8% para 6% da população, a classe média de 54% para 47% e a classe baixa de 38% para 47%, fez com que fossem eleitos políticos mais vinculados às pautas e projetos que trariam soluções aos problemas reais das classes mais baixas (incluindo-se nisso a classe média). Essas proporções são ainda mais espantosas quando consideramos que a base dessas classificações considera “classe média” famílias com rendas mensais per capta de R$667,87 a R$3.755,76 (se a renda mensal por pessoa superar isso, portanto, já se faz parte da “elite”). Ao mesmo tempo, para abril de 2022 (mesma época da publicação dos números acima), o DIEESE previa que o salário mínimo (atualmente em R$1.212,00) deveria ser de R$6.754,33 em comparação à cesta básica de alimentos.

É difícil crer que 94% de uma população (que genérica ou culturalmente vota por interesses pessoais) fosse votar espontaneamente para que sua condição de vida piorasse cada vez mais com o passar do tempo. Portanto, supõe se que os políticos que são apoiados financeiramente por projetos antipopulares (não impopulares, mas efetivamente contra o povo) mantêm um controle dos votos que recebem (seja com promessas vazias, compra de votos, ou mesmo por um terror regional). Soma se a isso os fantasmas ideológicos criados pela força das narrativas – inventam se problemas com distorções cotidianas da realidade, inventam se inimigos para demonizar a oposição política e, pior, inventam se soluções mágicas para evitar as soluções dos problemas reais.

Contra tudo isso, o povo – aquele que passa fome, aquele que forma mais de 90% da população – deve fazer valer seu número e seu voto. É necessário que nos conscientizemos e tentemos conscientizar todos a nossa volta de que enquanto o nosso voto não mudar a política institucional, a política institucional não mudará nem deixará de favorecer a quem favorece. O mínimo proveito que a periferia pode tirar em viver em uma democracia é a força coletiva (fator numérico) de seu voto, por políticos ou grupos políticos que tratem dos problemas reais. E não há melhor grupo social para saber quais são os problemas reais que aquelas pessoas que vivem a periferia (ainda que não morem mais nela).