Eles tentam nos enterrar, mas não sabem que somos sementes

Vereador de Curitiba, Renato Freitas (PT), fez manifestação em igreja da capital paranaense Foto: Reprodução/Instagram
Vereador de Curitiba, Renato Freitas (PT), fez manifestação em igreja da capital paranaense Foto: Reprodução/Instagram
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Por Juliana Leme Faleiros e Renata Pallottini – A cassação de Renato Freitas, vereador na cidade de Curitiba pelo Partido dos Trabalhadores (PT), é praticamente certa, juridicamente equivocada e talhada pelo racismo. Seus detratores alegam que ele, acompanhado de outros manifestantes, entrou sem autorização em templo religioso, perturbou o culto e fez ato político em lugar sagrado.

De fato, Renato Freitas estava numa manifestação pública e entrou na igreja do Rosário, no início de fevereiro de 2022. Esse ato político se deu em razão do assassinato do haitiano Moisë Kabagambe, em fins de janeiro, por cobrar os dias de trabalho num quiosque da Barra da Tijuca/Rio de Janeiro. Vale rememorar que Moisë foi agredido brutalmente por três homens, um deles continuou trabalhando no local mesmo com o corpo dele estendido na parte de trás do estabelecimento. As imagens, exaustivamente exibidas nas redes sociais e nos meios de comunicação tradicionais, comprovam o homicídio e o desprezo por aquele corpo humano. À indignação a respeito da morte de Moisë somou-se à morte, no mesmo período, de Durval Teófilo Filho, homem negro assassinado pelo vizinho militar por mexer em sua própria mochila em busca das chaves de casa.

São crimes contra a vida motivados por racismo, evidentemente. Racismo que estrutura a sociedade brasileira e que, por sustentá-la de pé, muitos se exasperam com aqueles que se levantam em protesto.

Os manifestantes de Curitiba ocuparam o Largo da Ordem, no centro da cidade, e, pacificamente, entraram na Igreja do Rosário que é a igreja do povo negro. Importa dizer que neste local, originalmente, havia a “Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito” erguida por homens e mulheres negros escravizados, em meados do século XVIII, por serem impedidos de entrar nos demais templos cristãos restritos aos não escravizados. No mínimo, um grande contrassenso.

Pertinente, ainda, tecer algumas provocações a fim de melhor compreender a ideologia enraizada nas representações protocoladas na Comissão de Ética da Câmara Municipal de Curitiba: caso os manifestantes tivessem ocupado terreiros de umbanda e candomblé, ao invés de uma igreja, será que os parlamentares sustentariam o entendimento de quebra de decoro e abuso das prerrogativas por parte de Renato Freitas? Será que o vereador pastor Marciano Alves (Solidariedade), signatário de uma das cinco representações protocoladas, insistiria na acusação de perturbação da prática de culto religioso e realização de ato político dentro de templos, se por acaso o ato político ocorresse em território religioso negro? O que será que de fato se pretende assegurar com a cassação do vereador negro, pobre e periférico?

Por essa manifestação antirracista – pacífica, repita-se – o vereador Renato Freitas (PT) está sendo processado pela Câmara de Vereadores com risco de ter seu mandato cassado e seus direitos políticos suspensos. Após a missa, Renato e os demais manifestantes entraram na igreja, pois pediam justiça pela vida de Moisë e Durval e, principalmente, a proteção da vida do povo negro. A própria Arquidiocese de Curitiba se manifestou explicitamente dizendo que não houve prática de atos violentos e requerendo que a Câmara evitasse a cassação.

Mas a maioria da Comissão de Ética votou pela cassação demonstrando que o “crime” de Renato Freitas está na coragem de existir como negro, de ocupar espaços públicos, de lutar pelo povo periférico e de colocar a luta antirracista no centro de suas pautas. Renato Freitas pode ser cassado porque, ao lançar-se nesses moldes, desvela a real intenção de seus algozes, ou seja, coloca a nu que a maioria de seus colegas de Parlamento só querem garantir privilégios para si e para os seus, jamais transformar a sociedade num espaço democrático que garanta as liberdades fundamentais.

O cenário de perseguição política a Renato Freitas é um claro sintoma da manifestação da racialidade branca na Câmara de Curitiba e é assim, como já nos ensinou Cida Bento, que a branquitude, enquanto elemento subjetivo, impacta nas ações dos parlamentares em prol da manutenção da estrutura desigual de poder. É como se houvesse um pacto entre os brancos, portanto, um acordo entre os vereadores, que negam os problemas de natureza racial, usam da velha tática do silenciamento para amordaçar aqueles que lutam por justiça social e através de suas prerrogativas preservam a hierarquia racial mantendo o povo negro longe dos espaços de poder. Merece destaque os saberes de Cida Bento quando nos alerta que “fala-se muito na herança da escravidão e nos impactos negativos para as populações negras, mas quase nunca se fala na herança escravocrata e nos seus impactos positivos para as pessoas brancas”.

O lema “o sul é o meu país” denota o caráter predominante desse região, qual seja, xenofobia calcada na defesa de uma branquitude perversa. Estima-se que 19 mil haitianos vivem no estado do Paraná, evidenciando que tem sido um dos destinos mais procurados por eles. Portanto, o ato político no qual Renato Freitas participou era pela vida de Moisë e Durval assim como pela dignidade desses inúmeros imigrantes.

A luta antirracista impõe a transformação social e isso, definitivamente, mexe com os interesses de muitos que só almejam a manutenção da ordem – classista, racista e machista – a marca da República de Curitiba (sic). No entanto, adverte-se, essa é uma luta que vem de longe e vai continuar. Eles tentam nos enterrar, mas esquecem que somos sementes.

Por Juliana Leme Faleiros, doutora e mestra em Direito Político e Econômico (Mackenzie). Especialista em Direito Constitucional (ESDC). É bacharela em Direito e em Ciência Política. Advogada, professora e membro do coletivo Terreiro Resiste; e
Renata Pallottini, advogada especialista em direito e processo penal (Mackenzie). É bacharela em Direito (Mackenzie). Atuante no combate ao racismo religioso. Diretora jurídica do coletivo Terreiro Resiste.