De qual disputa de narrativas precisamos para as eleições de 2022?

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Uma candidatura política não é apenas a disposição de um voluntário ao poder representando uma coalizão em um processo eleitoral. Toda candidatura – sobretudo à presidência da República – é também a elaboração de um discurso complexo que envolve desde elementos os mais comezinhos da vida ordinária das pessoas a uma cosmologia ou teologia que confira à figura do candidato o pertencimento a algo maior, quer sob matizes históricos grandiloquentes, quer sob espirituais, religiosos e místicos.

Nas eleições de 2018, vimos esse fenômeno. Na ausência de Lula, o professor Haddad e o capitão Jair protagonizaram, no segundo turno, campanhas com discursos bastante expressivos quanto ao significado último de suas presenças ali. Haddad representava a democracia contra o retorno da ditadura; Bolsonaro, o Brasil contra o comunismo. E foi o apelo a narrativas que tornassem um e outro “o escolhido” para ser “o eleito” o que acabou ajudando a determinar o rumo das eleições. Haddad sempre repetiu ter sido o escolhido pelo presidente Lula; Bolsonaro, principalmente depois de Adélio Bispo, se fez o escolhido por Deus.

Ali, como sempre, o teor totalizante do discurso político de cada ator precisava forjar um vocabulário que inibisse a preferência pelo concorrente à vaga. Também a disputa entre esses vocabulários, idênticos na forma, foi de grande valia, senão determinante. Bolsonaro e seus correligionários e apoiadores utilizaram um vocabulário em que ele era o escolhido por Deus para lutar contra algo difuso, heterogêneo, mas coeso em produzir o mal: o comunismo, o socialismo, a esquerda etc. Haddad e seus companheiros recorreram ao expediente do “Ele não!”, em que o alvo é uma pessoa, e os que o alvejam são muitos e diversos. Um perfeito tiro pela culatra, pois confirmou a metafísica do discurso bolsonarista, que dizia que o escolhido de Deus para a missão seria perseguido, ameaçado, traído e alvejado.

As eleições previstas para esse ano já são assediadas pela elaboração antecipada desse tipo de discurso. Lula e Bolsonaro estão apostando em vocabulários de termos binários para designar o processo eleitoral e, principalmente, seu desfecho. Temos ouvido de gente como o senador Randolfe Rodrigues, qualquer coisa do tipo: “não é hora para testar alternativas, só Lula pode vencer Bolsonaro, como só a democracia é párea para o fascismo”. Sim, o lulo-petismo apostará no binômio democracia X fascismo para conferir grandeza ao retorno de Lula. Mas, como eles sabem que essa oposição pega mais nas classes médias do que nas camadas populares, da boca do próprio Lula, que novamente fala em colocar o pobre no orçamento – como se fosse virtude bancar a pobreza em vez de erradicá-la –, tudo indica que a narrativa vai apelar à luta entre pobres e ricos.

Bolsonaro, de seu lado, já está apostando todas as fichas no segmento que tem sido mais fiel à sua figura: os evangélicos. Além deles, compõem a lista de público alvo do discurso bolsonarista o mundo rural, sobretudo o ligado ao agronegócio – não o agronegócio cosmopolita e bem escolarizado, mas à cultura caipira e sertaneja – e os profissionais ligados direta e indiretamente à segurança nas cidades. Bolsonaro já emitiu o seu binômio: é o bem contra o mal. Só que o mal, dessa vez, não é apenas os seus concorrentes que podem vencê-lo em um processo limpo, mas também os responsáveis pela própria condução do processo, aos quais o presidente já aponta o dedo denunciando a suposta preferência a Lula.

Em uma história recente de processos sucessivos costurados por vocabulários binários fica realmente difícil tornar factível ao imaginário popular a ocorrência de uma “terceira via” ou o que quer que soe como tal. Ao fim, todo discurso binário recai na disputa entre carismas. Não há como haver discussão séria sobre o país quando a oposição é sempre entre CPFs.

Por isso, talvez, um caminho possível para construirmos uma alternativa não seja negando o formato binário das narrativas eleitorais, mas apostando num conteúdo que impeça que a discussão desague invariavelmente em duas pessoas. É preciso discutir acima de tudo ideias detalhadas sobre o que fazer com o país, não atores e intenções presumidas. Se fosse para ter um vocabulário binário, que tivéssemos um para opor carismas a projetos. Só o que importa é o projeto, quem apela ao próprio carisma esconde seus próprios propósitos.

Uma candidatura cuja narrativa mostrasse como a explicação didática e paciente do que cada candidato pretende em cada área que sofrerá sua intervenção tem mais importância do que falas vagas sobre democracia ou sobre Deus, e que conseguisse firmar o discurso de forma convincente e clara, não há de anular ou reduzir a representação política de cada personalidade na disputa, mostraria que só é possível sair de nossa circunstância se cada personalidade apresentar as ideias em vez de frases feitas. Não é fácil optar pelo complexo e contrariar a lei do menor esforço. Mas, se é para ser simples na construção do discurso, imagino que mostrar o caráter perigoso do carisma e o positivo dos projetos, exigindo que os que vivem do carisma exponham seus projetos, é um caminho.