Crise do neoliberalismo ou colapso do capital

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Atualmente, dentro da esquerda acadêmica e digital, todos falam de crise do neoliberalismo e necessidade de um novo projeto de desenvolvimento econômico nacional. Retomando a escola regulacionista francesa, o capital é crise e sempre se reestrutura com um novo regime de acumulação e modo de regulação. Ambos se relacionam entre si e produzem um modo de desenvolvimento capitalista distinto, ou seja, as categorias reais de socialização capitalistas mercadoria, dinheiro, trabalho, Estado e direito são hipostasiadas e trata-se sempre de como o capital racionalmente readapta sua acumulação com novos arranjos institucionais.

No fordismo tinha-se um regime de acumulação baseado no consumo de massa e crescimento da produção de mercadorias que era regulada pela instituições do chamado Estado de bem estar social. No pós-fordismo, o capital especulativo tem primazia sobre o capital industrial e a regulação se daria por um processo de liberalização dos mercados e privatizações dos serviços antes estatais. Essa visão trata o capital como um processo racional, proveniente da consolidação das relações de forças, ou, se preferirem, de ações intencionais que se chocam e criam diferentes arranjos possíveis.

Entretanto, as categorias que são hipostasiadas são especificamente capitalistas, não existindo nas sociedades pré-capitalistas e o capital é uma objetividade inconsciente e automática, algo não percebido pelos regulacionistas por focarem na luta de classes e ações estratégicas e ocultarem a crítica do fetichismo da mercadoria. Para eles, o capital se comporta como o eterno retorno nietzschiano, ou melhor, a fênix que sempre renasce das cinzas em um novo regime de acumulação e regulação.

Ao ler o texto do pesquisador Maurilio Botelho, que ministrará uma palestra no Sindilex nesta quarta, retomei seu texto “Entre as crises e o colapso: cinco notas sobre a falência estrutural do capitalismo” e resolvi expressar porque podemos falar de um limite interno absoluto do capital e de colapso e não mais de uma mera crise imanente.

No atual estágio de desenvolvimento capitalista, desde a década de 70, não há mais períodos de ascensão do capital com posterior crise; mas um processo longo de declínio histórico com crises econômicas sucessivas interligadas de dessubstancialização do capital, ou seja, de desmoronamento e decomposição da produção baseada no valor. Com a Terceira Revolução Industrial e as novas tecnologias microeletrônicas na produção de mercadorias, há um desenvolvimento dos métodos produtivos e expulsão massiva de trabalhadores. Nas crises passadas a racionalização da produção expulsava trabalhadores, mas com a criação de novas necessidades, novas cadeias produtivas ligadas à nova técnica introduzida reintroduzia os trabalhadores em novos empregos. A expulsão seguia-se de uma compensação, com o deslocamento dos trabalhadores para um novo setor produtivo. Durante o inicio do pós-fordismo o setor produtivo expelia os trabalhadores e o setor de serviços realocava-os, mas com a microtecnologia a automação atinge todas as esferas e torna-se cada vez mais impossível criar novos empregos. O trabalho torna-se obsoleto e a venda da força de trabalho a exceção. Quem continua com empregos nas fábricas constitui uma aristocracia operária.

A uberização do trabalho já pode ser substituída, na Pensilvânia, pela automação com carros sem motorista ou, no caso do Japão, o uso de drones para serviços postais. Todos os setores, produtivos ou improdutivos, são afetados principalmente com a Quarta Revolução Industrial, em que a automação torna-se cada vez mais anacrônico o trabalho. Imagino comigo um projeto de desenvolvimento nacional com a indústria 4.0, só um pensamento calcado na ontologia do trabalho pode defender tal absurdo.

Hoje vivemos uma expansão da produção sem criação de valor, mais produção de riquezas dissociadas do valor. Como a força de trabalho é a única mercadoria capaz de produzir valor, a substituição desta pelas máquinas gera uma superacumulação sem destinação rentável, o que produz a hipertrofia do mercado financeiro, ou, em outras palavras, a substituição da valorização do valor (em que o trabalho humano é a substância social do capital) pela dessubstancialização do dinheiro (capitalização). A superacumulação é sintoma do limite interno absoluto do capital e seu colapso, produzindo como manifestações o desemprego, crédito barato (já que o poder de compra se deteriora e o endividamento privado aumenta), capacidade ociosa, superprodução e a isso se junta o subconsumo. Não vivemos apenas uma crise de superacumulação ou subconsumo, como nas crises cíclicas, mas a manifestação de ambas pela crise estrutural do trabalho.

Além da crise do trabalho, há um deslocamento gradual dos trabalhadores dos setores produtivos aos setores improdutivos. Trabalho produtivo é aquele que produz valor ou contribui no aumento do valor, ou seja, ampliação da massa de valor. Trata-se dos trabalhos em fábricas (peça de museu hoje) e setores ligados a este, como educação e a indústria cultural. Trabalhos improdutivos são aqueles que não acrescentam nada na produção de valor, como o comércio e finanças, ligados à circulação mercantil. O comércio só possibilita a transferência da propriedade do bem do vendedor ao comprador, através de relações de troca/relações jurídicas, e seus salários derivam da distribuição do valor produzido pelos setores produtivos. Para maiores detalhes, ver “Ascensão do dinheiro aos céus” do Robert Kurz.

Outro sintoma do colapso é a crise do dinheiro. O dinheiro nada mais é que uma mercadoria apartada das demais que tem a função de representar a equivalência geral já dada pelo valor (dispêndio de nervos e músculos). O dinheiro se autonomizou e dissociou-se da mercadoria, trata-se de um “dinheiro sem valor”, dessubstancializado, que se multiplica em si e para si e a economia global transforma-se em um cassino global. Isso decorre do excesso de superacumulação sem investimento rentáveis que produzem bolhas especulativas, com por exemplo a bolha imobiliária norte-americana de 2008, em que os indivíduos se endividavam contraindo créditos hipotecários e “dando vida” a um “corpo morto”: a matriz de constituição fetichista do capital. Após o boom das bolhas, o crash das mesmas. Trata-se de uma economia de simulação, da primazia dos juros sobre o lucro, do dinheiro sobre a mercadoria, do endividamento sobre o salário.

Nesse cenário de crise do valor, segue a crise do Estado que não tem mais o que regular, apenas gerir o colapso. Com a redução da arrecadação e aumento dos gastos, cabe aos Estados competirem para atrair investimentos (luta pelo endividamento estatal) com uma guerra fiscal, que condiciona o fim das relações trabalhistas, previdenciárias, diminuição de impostos, pois a sociedade pautada no trabalho foi substituída pela “jobless society”.

Do exposto decorre a transição do fordismo (momento que o capital atinge a totalidade do globo e surge um mercado mundial) para o pós-fordismo (processo de autodestruição das bases capitalistas de produção e reprodução). Para além de uma mudança de regimes de acumulação e modos de regulação, fordismo e pós-fordismo, houve o capital atingindo seu limite interno absoluto e houve a mudança de uma valorização do valor no fordismo para uma desvalorização progressiva, baseada na desvinculação entre produção de riqueza material e criação de valor, com uma economia de simulação lastreada no capital fictício e uma gestão do colapso pelo Estado através da inclusão ou repressão. De uma sociedade de operários em fábricas para uma sociedade de motoboys entregadores de comida, essa imagem diz mais do que os marxistas ontológicos do trabalho conseguem compreender.