Mais Coringa. Que filmaço meus amigos, a ponto de eu me meter a tentar escrever mais algumas palavras sobre ele, mesmo depois da avalanche de críticas que recebeu.
Não sou cinéfilo nem dublê de crítico, mas fiquei muito impressionado com o filme, mesmo depois de todos avisarem que era impressionante.
Primeiro com Joaquin Phoenix. Não que sua atuação tenha sido perfeita, mas porque ele assumiu uma missão impossível: dar origem verossímil a um personagem inverossímil e já muito bem interpretado por Jack Nicholson e Heath Ledger. E ele, na minha opinião, facilmente os supera no personagem acabado e nos convence plenamente de sua construção como sujeito.
Mas o filme é muito mais que Phoenix. O que me impressionou particularmente em “Coringa” é que ele, sendo um filme de supervilão de quadrinhos retrô e ambientado em algum lugar imaginário lá pelos anos 50, consegue ser a mais acurada descrição cinematográfica de nosso tempo que vi nesta década.
As críticas ao filme se dividiram entre a crítica ao capitalismo com a exaltação de sua suposta “violência revolucionária” e o lamento burguês temeroso de sua suposta exaltação da “violência niilista” que poderia “motivar atos de terrorismo”. Ainda uma terceira linha pegou a trilha identitária para criticar a “masculinidade branca tóxica” do personagem e, assim, como sempre, fazer o trabalho de atacar os mesmos inimigos que são os alvos da crítica burguesa.
Pois eu vou ousar aqui tomar uma quarta linha de interpretação.
Acho que é possível fazer isso de forma coerente porque, como toda obra prima, “Coringa” dá margem a diversas interpretações não porque o diretor foi obscuro, mas porque ao conseguir retratar uma época em seus dilemas universais com parte de sua complexidade, dá margem para interpretá-la de vários ângulos igualmente fundamentais.
A MÁQUINA DE INFELICIDADE
Nem tudo o que vou considerar aqui pude enxergar no filme, mas é interessante que ele vá na jugular de um dos aspectos sempre negligenciados na crítica ao capitalismo contemporâneo (que ainda geralmente é predominantemente marxista) e que é na minha opinião sua principal barbárie. O capitalismo neoliberal é a maior máquina de doenças mentais e infelicidade que a humanidade já produziu.
A sociedade ocidental entrou numa espiral de infelicidade e doença psíquica a ponto de a Organização Mundial da Saúde ter previsto no fim do século passado que a epidemia de depressão seria responsável por cerca de 10% do total de anos produtivos desperdiçados pela humanidade em 2030. Mas errou. A estimativa foi alcançada vinte anos antes, em 2010.
A epidemia de depressão contemporânea é fruto do aumento da precariedade da vida e dos índices de stress na sociedade da informação. O stress é uma reação de luta ou fuga automática do corpo que se perpetua no tempo quando o evento ameaçador não se dissipa.
O corpo tem uma capacidade limitada de lidar com o stress, que baixa a imunidade ao longo do tempo. Quando essa capacidade é ultrapassada, vêm as doenças crônicas e a depressão.
O maior fator de stress é a sensação de falta de controle sobre seu próprio tempo e condições de sobrevivência. Essa afirmação não é fruto de mera opinião nem somente sustentada por vários estudos de correlação, mas é também resultado de experimentos com ratos e cães.
E não só o stress, mas também a depressão. A percepção do sujeito de que ele não tem controle sobre os estímulos estressores enquanto outros sujeitos na mesma condição têm, gera inclusive o quadro que chamamos de “desamparo aprendido”, uma baixa radical na autoestima e humor.
Só que tirar do sujeito o controle sobre sua vida, tempo e sobrevivência o mantendo sobre permanente stress é a ferramenta básica de exploração e produtividade do capitalismo contemporâneo. Ao longo do tempo o destino disso é a depressão. Mas esse problema só existe para o trabalhador, porque o sistema tem um largo exército de mão de obra de reserva e espera manter sua máquina de infelicidade através de uma sociedade totalmente controlada pela tecnologia.
A população de Gotham ainda não está sob o controle da sociedade da informação, mas de resto, ela vive numa cidade suja e decadente, assolada pelo trânsito, poluição, desemprego e violência. Como se não bastasse, é assolada pela solidão e o individualismo. O isolamento social generalizado e a precariedade das relações destroem o tecido social. O terreno é ideal para a proliferação de todas as doenças psíquicas.
Se isso torna a vida de sujeitos comuns miserável e insuportável, que dirá a de sujeitos realmente vulneráveis psiquicamente como Fleck, o Coringa.
ONDE ESTÁ A FELICIDADE?
Numa das passagens mais dramáticas do filme, o acerto de contas com a mãe no hospital, ele expressa a grande ausência não só de sua vida, mas do filme: a felicidade. “Nunca fui feliz um único minuto de minha vida”. Nem ele, nem qualquer personagem do filme, aparentemente.
A felicidade foi assassinada, mas o capitalismo não se conforma com esse crime. Ela continua sendo o maior objeto de desejo do ser humano e, portanto, precisa ser vendida. Se ela não existe mais, precisa ser inventada.
Num universo de pessoas infelizes que não conhecem o sentimento de felicidade, ela é prometida através de uma avalanche interminável de imagens e demandas de consumo que criam falsas necessidades e no fim aumentam a frustração e sensação de fracasso dos seres humanos que são incapazes de acompanha-la e não encontram nada nela.
Fleck, que não sabe o que é felicidade, a procura na coisa mais semelhante disponível, a alegria e o humor, que estuda aplicadamente, mas sequer consegue entender. No entanto, tenta a vender para viver, a pinta na cara e sabe que a sociedade não aceita expressões de infelicidade. Ela é considerada somente mais uma das expressões de insucesso.
Mas ela é o único verdadeiro insucesso.
Porque a felicidade desapareceu?
Quando você se depara com os estudos atuais sobre felicidade, encontra repetidamente os mesmos preditores principais, e creio que a maioria dos leitores não terá grandes dificuldades de concordar com eles: fé religiosa, autoestima, otimismo, tecido social forte (família, amigos e casamento), trabalhar naquilo que gosta, usar suas habilidades em toda extensão num trabalho ou hobby, dormir bem, se exercitar.
Tudo o que está ausente do mundo onde vive Fleck e grande parte dos seres humanos hoje.
Também sabemos hoje, não só por senso comum, mas por pesquisas empíricas, que a ausência de recursos para uma vida segura causa infelicidade, mas a abundância de dinheiro para além do necessário para a mera segurança física e alimentar não acrescenta nada ao nível de felicidade natural do indivíduo.
O neoliberalismo hoje concentra em menos de um por cento da população uma vida desprovida de necessidades enquanto destrói a classe média e constrói um grande precariado que não tem direitos e não sabe se comerá mês que vem.
Da mesma forma, estudos sustentam a noção óbvia de que é o amor, e não o dinheiro, que traz felicidade. Quanto mais prioridade se dá ao amor, mais feliz é a pessoa, e vice-versa. Já quanto mais uma pessoa se dedica a ganhar dinheiro, mais infeliz é. Pior ainda se suas necessidades básicas já estão satisfeitas.
O neoliberalismo condena as pessoas ao trabalho ininterrupto para conseguirem comer, obrigando que elas vivam para o dinheiro e tirando do trabalhador as condições para formar uma família. Os poucos que conseguem, joga numa espiral de consumo criando falsas necessidades que o mantenham escravizados.
Por fim, um aspecto pouco enobrecedor da natureza humana aparece nas pesquisas sobre o “princípio de privação relativa”, que demonstra que nosso índice subjetivo de felicidade não é relativo somente a nossas experiências atuais ou passadas, mas em grande parte também a nossas comparações com a vida dos outros. Isso explica a fascinação por programas que desnudam a desgraça da vida alheia, assim como o desejo de muitas pessoas pelo sofrimento do semelhante para se sentir mais bem-sucedidas.
Isso também explica a fascinação com o personagem incrivelmente torturado de Fleck.
O COLAPSO DAS INTERPRETAÇÕES
Alguns pósmod interpretaram Fleck como a expressão da maldade politicamente incorreta, de uma “masculinidade branca tóxica incel”. Sim, ele é tudo isso. Mas o “Coringa” é também um filme politicamente correto.
O que caracteriza o politicamente correto é a ideia de que todos são vítimas oprimidas em colisão, sem responsabilidade pessoal por sua condição qualquer que ela seja, pois os opressores são eles mesmos oprimidos em nível superior por alguém até que no topo dessa cadeia alimentar de opressão identitária está o opressor universal: o “homem branco heterossexual”.
Mas “Coringa” dá uma “causa” para o “terrorismo branco” do personagem que está no topo dessa cadeia e o inclui no jogo da opressão tornando a sociedade um perfeito círculo de vítimas em colisão sem responsabilidade alguma por seu ressentimento, narcisismo ou maldade.
Esse é um dos motivos dele ser tão perturbador, polêmico e desestabilizador.
A condição de macho branco opressor é dissolvida no filme quando temos que encarar as condições de brutal opressão em que Fleck vive: desprezado, miserável, cuidando de uma mãe solteira que de início parece ter sido abusada mas se revela abusadora e chantagista, doente mental grave que depende de um coquetel de psicofármacos para funcionar numa sociedade disfuncional, membro do precariado, vítima de violência por sua condição mental, vítima da genética, vítima da sociedade.
O Coringa é um demônio imaculado, sem culpa.
E, sendo um demônio, ainda desperta a identificação da maioria da plateia.
Isso tudo deixa liberais e marxistas, espiritualistas e materialistas, conservadores e identitários perplexos.
Ele é um perigo para os liberais pois cospe na democracia liberal putrefata e pervertida por uma elite econômica cruel e insensível.
É um perigo para os marxistas porque associa a revolta contra a exploração e humilhação do capitalismo a inveja, fracasso ou ao puro mal.
É um perigo para os espiritualistas porque ele não quer a redenção.
É um perigo para os materialistas porque ele é a expressão bruta de seu niilismo e do super-homem nietzschiano.
É um perigo para os conservadores porque não reconhece mais nenhum valor a conservar na sociedade.
É um perigo para os identitários porque mostra que a opressão na sociedade atual é indiscriminadamente brutal e é de classe.
O Coringa é um perigo.
Ele é um sintoma de nossa degeneração moral, uma expressão acabada de onde chegamos, uma sociedade falida moralmente, infeliz, produtora em massa de doenças mentais, sem valores, onde só os vilões têm voz.
Uma sociedade onde só cabe a quem não é um vilão tentar ajudar, proteger e nutrir aqueles condenados à infelicidade, mas que pode fazer para isso muito pouco mais do que resistir ao suicídio ou colocar seu corpo como último anteparo entre a eles e a maldade do mundo, como faz a personagem da mãe solteira, paixão de Fleck.
Não se trata aqui só da falência moral do capitalismo, mas também de suas críticas que nos deixam sem instrumentos de luta capazes de fazer frente ao colapso e fragmentação de nosso tempo.
Enfim, “Coringa” é tão perturbador porque ele é um filme de terror sem fantasmas, de quadrinhos sem herói, de realidade através da fantasia, uma pequena trombeta do apocalipse que anuncia que estamos vazios, errados, nus e sem heróis para nos salvar.
E se não bastasse, ainda nos faz deixar o cinema aceitando o caos como único desfecho possível para essa história.