Colômbia abre espaço para a mulher como sujeito da própria história

Aborto na colômbia
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Por Juliana Leme Faleiros – Ocupando espaço ao lado de Cuba (1965), Guiana (1995), Uruguai (2012) e Argentina (2020), a Colômbia também passou a autorizar a realização de aborto até determinado estágio da gestação. Em fins de fevereiro de 2022, a Corte constitucional colombiana decidiu que a tipicidade do artigo 122 da Lei n. 599/2000 (Código Penal) só estará presente se a conduta for praticada após a 24ª semana e, mesmo assim, se não estiver presente risco à saúde física ou psíquica da gestante, a gravidez não for resultante de violência sexual e a constatação da inviabilidade do feto, exceções constantes em decisão proferida em 2006 (Sentencia C-355/06) que configuram a atipicidade da conduta.

A recente decisão, portanto, vem amplificar a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e impõe aos Poderes Executivo e Legislativo a formulação e implementação de políticas públicas no sentido protetivo da dignidade humana. De acordo com o Tribunal, a política deve conter programa de educação sexual para todas as pessoas, a divulgação clara das opções disponíveis para mulheres gestantes durante e depois da gravidez, a eliminação de obstáculos para o exercício de direitos sexuais e reprodutivos reconhecidos na decisão judicial, medidas de planejamento e prevenção de gravidez indesejada, entre outras.

Essa decisão está alinhada ao sistema internacional de direitos humanos, valendo destacar a Agenda 2030 que no ODS 5 (alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas) explicita o objetivo de assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e resguardar os direitos reprodutivos conforme disposto na “Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento”, de 1994, e na Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher, de 1995.

Veja: o reconhecimento explícito de que as mulheres são sujeito de direitos humanos aconteceu, pela primeira vez, em 1993, na Conferência Internacional de População e Desenvolvimento realizada no Cairo e, nesse mesmo documento, já constava a preocupação com a violação de inúmeros direitos de meninas e mulheres, especialmente, seus direitos sexuais e reprodutivos.

A decisão da Corte Constitucional colombiana deve ser celebrada e, fundamentalmente, cobrada sua execução. O reconhecimento do direito das mulheres de decidirem sobre seus destinos, sobre ser mãe ou não e sobre a quantidade de filhos é o ponto nevrálgico do debate feminista. O afastamento dessa temática ou a recusa em tratar desse assunto pode ser qualquer outra coisa, menos feminista.

Vale destacar que a decisão causou certo furor nas redes sociais principalmente dos autoaclamados pró-vida que, em verdade, são antiescolha como bem ponderado por Katha Pollitt. Um dos “memes” espalhados para confundir a compreensão do debate é do jogador de futebol Cristiano Ronaldo abraçado a sua mãe que declarou ter tentado interromper a gestação, pois, além das dificuldades financeiras, era mais um filho de relacionamento com um homem alcoolista. Ela já era mãe, mas não queria mais filhos.

Com esse “meme”, os antiescolha querem dizer: não teríamos o espetáculo de CR7 se ela tivesse tido êxito em seu intento. Ora, seria muito mais pertinente perguntar o desejo da mulher/mãe, seria interessante perguntar quantos CR7 deixaram de ser revelados porque vivem em situação de rua ou tiveram suas vidas ceifadas em incursões militares pelo mundo todo, quantas mulheres poderiam ter sido Martas se não tivessem suas vidas reduzidas a parir e atender demandas de companheiros alcoolizados ou drogaditos. Quantas meninas ou mulheres tiveram seus desejos frustrados porque se tornaram mãe numa sociedade que mitifica a maternidade sem proporcionar qualquer amparo real a elas?
As mulheres abortam – isso é fato – e, em sua maioria, são casadas, têm filhos e são religiosas. A hipocrisia dos antiescolha pode levar à morte de milhares de meninas e mulheres. Se não a morte física, pode levar a profundos conflitos subjetivos destruindo a integridade psíquica.

No Brasil, seguimos com os direitos humanos das mulheres sendo violados, pois mesmo nos casos autorizados – estupro, risco de morte da gestante ou feto anencefálico – o sistema de saúde público é precário desatendendo-as em seus direitos básicos. O atual ocupante da Presidência da República brasileira, eleito por defender a tradição, a família e a propriedade, reforça a violação dos direitos humanos de meninas e mulheres ao impedir que políticas públicas voltadas à educação sexual e à saúde reprodutiva sejam implementadas. No entanto, quando sua segunda companheira engravidou de seu filho 04 ele colocou para ela a possibilidade de aborto. Mais do que “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” seu slogan é “façam o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.

Por Juliana Leme Faleiros – Doutora e mestra em Direito Político e Econômico (Mackenzie). Especialista em Direito Constitucional (ESDC). Bacharela em Direito e Ciência Política. Advogada e professora.