O colapso identitário e a mensagem da cidadania

O colapso identitario e a mensagem da cidadania
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O identitarismo é um fracasso moral, intelectual e eleitoral que vingou na geração dos nascidos na segunda metade dos anos oitenta e primeira dos anos noventa. Essa é a minha geração. Somos nós os responsáveis por esse erro e compete a nós a correção.

Os coetâneos à assembleia constituinte de 1988 e à Queda do Muro de Berlim eram imaginados pelas gerações que viveram a ditadura militar como beneficiários de um Brasil novo. Apesar das desilusões com o socialismo real, as expectativas generosas de um imaginário nacional inclusivista puderam sobreviver na socialdemocracia embutida na Constituição de 88. Naquela ocasião, o catalisador das esperanças era o ideal da cidadania.

Contudo, para de sub-cidadãos, aquele ideal só teria valia se prestasse as contas de suas promessas com factibilidade e velocidade. E isso não ocorreu. Cidadania requer mudança nas articulações básica da sociedade nacional, o que demanda, por sua vez, reformas institucionais profundas que as elites políticas sempre evitaram.

Os anos 90 e 2000 foram de novas desilusões, doravante, com respeito aos direitos catalogados na Constituição de 88 e nunca assegurados plenamente. Daí, a própria ideia de cidadania, que excitou a geração de militantes políticos e profissionais do ramo, após 25 anos de regime fechado, perdeu força, sendo substituída, no miúdo do cotidiano, pela cultura popular do consumo e pelas práticas políticas da redistribuição compensatória. Progresso inclusivo virou algo como empurrar para dentro de um trem com vagões destroçados massas ansiosas para sair do lugar.

Quando o identitarismo passou a vigorar nas universidades e na imprensa, em fins do segundo mandato de Lula, o fracasso da cidadania enquanto mensagem de unificação nacional, já era um fato consumado. Nacional, aliás, tornou-se sinônimo da matriz de sofrimentos e opressões, à qual, de acordo com os porta-vozes da moralidade identitária, conviria resistir os nichos de identidades coletivas.

Com a cidadania, também foi sepultado o impulso propositivo e afirmativo de nossa situação coletiva, sendo trocado por slogans e rótulos escritos com prefixos de negação (o “DESconstruído”, o “ANTIrracista”, o “NÃO-binário”…) e dirigidos para quebras e rupturas, nunca para recombinações e reconstruções. O identitarismo é o espírito do tempo de uma geração que desistiu de inventar o Brasil, preferindo difamá-lo e de desqualifica-lo.

Por todos os lados, todavia, há indícios de que ele não tem como durar. Seu pan-conflitivismo intrínseco é inteiramente incompatível com a materialidade da vida, sobretudo em um país insistentemente carente. Eis a razão pela qual as agendas e discussões identitárias vêm sendo mais e mais questionadas e renegadas, não só por uma extrema direita, que se aproveita de sua esterilidade para lançar o oposto simétrico ideológico, o das guerras culturais, como também por toda uma elite letrada que se vê exausta da esterilidade hegemônica dessa turma ociosa, e, por fim, por uma juventude que considera patético e anacrônico tudo o que a minha geração considerou presunçosamente progresso.

Os vícios de linguagem do identitarismo, porém, não se apagarão facilmente. São demasiadamente fáceis e hipnóticos. Caem bem com o novo dispositivo de atuação pública: o dos comentários em postagens de rede. Não serão instantaneamente abandonados. E seus sintomas farão sobreviver, no léxico do debate público, as confusões que os identitários semeiam com graus variados de acinte.

Por isso, é preciso reintroduzir em nossa linguagem política e moral um vocabulário que faça a renovação gradativa dos termos e cacoetes identitários. Que o troquemos por um glossário outro ainda a se experimentar. E que com ele outras atitudes tornem-se ordinárias. Seria um trabalho similar ao que a URV operou para substituir a moeda contaminada de inflação por uma moeda nova, o Real. É essa a contribuição que falta a minha geração oferecer após o veneno que ela espalhou no solo da nação.

Proponho que recuperemos a esquecida e promissora mensagem da cidadania. Que refaçamos a nossa discussão para conferir lugar especial a esse valor. Que ela seja a norteadora de uma agenda coletiva de unificação nacional. E que seja proveitosamente empregada para abrigar a condição daqueles que o identitarismo fingiu defender.

Que ela faça ver, por exemplo, que o desrespeito ao direito de um negro não confere ao branco um privilégio, ou que a agressão a um gay, não condiz com uma normatividade do hetero, mas, antes, que essas coisas, juntas ou isoladas, inviabilizam a nossa cidadania, a tornam constituída de uma precariedade intolerável para nós brasileiros. Porque todos perdemos com o desrespeito e com a violência. Precisamos arriscar um empreendimento coletivo alternativo às lamentações e inspirador para o enfrentamento de problemas, não para o enaltecimento de identidades fragmentárias. Porque é ilusão achar que há saída para problemas nacionais renegando o que nos nacionaliza.

A mensagem da cidadania não tem de ser aquela que reflete a pirâmide dos direitos de Marshall. Pode ser um experimento novo e original a partir do caminho alternativo que já começamos a trilhar com a inversão da pirâmide – fenômeno nacional bem apontado por José Murilo de Carvalho. Não dá mais para abdicar de um valor que nos una efetivamente. A experiência histórica trazida por minha geração está no vácuo de cidadania preenchido pela desorientação e pela desagregação identitárias. Tratemos de corrigir esse erro.