Chico Buarque, dois sambas e dois Brasis

Botão Siga o Disparada no Google News

Quando escreveu a letra de “Vai Passar”, Chico Buarque vivia um Brasil machucado. Machucado, mas esperançoso. Era o ano de 1980 e a ditadura, que ainda atormentava o povo brasileiro, dava seus sinais de agonia sob o melancólico governo Figueiredo. Havia esperança de que o tempo das “tenebrosas transações”, que subtraíram a pátria mãe distraída, finalmente passasse. E o anúncio dessa passagem estava na inebriante alegria de um samba-enredo, que celebrasse um passado longínquo de sambas imortais, ao ritmo dos quais dançaram tantas gerações precedentes de brasileiros sobre os paralelepípedos da velha cidade. Esse samba, ademais, viria para que não se deixasse esquecer o passado recente e sangrento, “a página infeliz da nossa história”.

E assim deu-se o samba que anunciou “vai passar”, referindo-se às dores, à história e ao próximo bloco de loucos e felizes na avenida, cada um dos quais merecendo uma atenção especial de nosso olhar de brasileiros, e todos dentro da mesma alcunha ambígua, contraditória e paradoxal do “sanatório geral”.

Nesse vai passar, acabou que se passaram quarenta e dois anos. E, no bojo de uma precarização total das coisas, o que vimos foi a chegada ao poder de outra leva de militares, liderados por um ex-militar, que fez explodir todo o pus de ódio acumulado no subcutâneo de nossa sociedade. Com a autenticidade e a capacidade de comunicação que lhe são próprias, deu orgulho, entre muitos, a ignorantes e semiletrados, com os quais firmou um pacto para cultivo e produção de dissonâncias cognitivas e cóleras sociais. Não é mais o Brasil que havia sido, moldado em uma (ao menos aparente) unidade social, como a entrevista na letra de “Vai passar”, e sequestrado por uma elite armada, ilegítima e impopular. Não é mais, em suma, aquele Brasil que demandava um samba, propriamente, esperançoso.

“Que tal um samba”, lançado em 2022, nada tem da cadência carnavalesca daquele. É mais um samba com tímidos traços do ritmo do recôncavo baiano, com algo do gingado da música caribenha, com uma repetição mântrica determinada por poucos acordes e com a frenética presença do choro carioca, exuberante como só no bandolim do Jacob. E sua letra é, principalmente, a de um convite. Um convite como o de quem chama um amigo pra tomar um café, fumar um cigarro, dar uma volta… Um convite para o comezinho, para diluir a ressaca, para “espantar o tempo feio”. É uma letra sobre um momento de pós-cansaço, sem espaço para o grandiloquente, o vibrante, sem brecha para exaltar o espírito de uma nação.
Esse samba serve para sublimar a vida privada, mais do que para enaltecer a condição heroica de se ser brasileiro. “Sair de boa”, “fazer um gol de bicicleta”, “entrar na roda da Gamboa”. (Aliás, quando fala de um filho “bem brasileiro”, a figura que vem é de alguém “da pele escura”, “com formosura”, “não com dinheiro, mas a cultura”. Muito diferente da narrativa sobre a pátria cujos filhos compunham a mistura de alas e blocos na expressão suprema da “evolução da liberdade”: o carnaval). Em vez disso, “Que tal um samba” é o desejo de recuperar uma ternura que o próprio letrista suspeita já termos perdido.

Uma semelhança: ambos os sambas são sobre superar uma fase histórica. Deixar pra trás o que nos fez mal e buscar na simplicidade prazerosa da arte e do trabalho a nossa essência historicamente construída e utopicamente projetada. Lá, foi preciso defenestrar o que nos penitenciou; cá, é preciso lidar com nossos próprios erros e vícios (“depois de muita bola fora da meta”, “tomar um banho de sal grosso”, “juntar os cacos e ir à luta”).

Uma diferença: a ditadura era uma tratativa maligna e exógena de usurpar a nação. Clamar para que seu tempo passasse era clamar para que o poder do Estado espelhasse da sociedade civil plural e criativa aquilo que éramos e o que viríamos a ser. O bolsonarismo, por sua vez, é uma epifania ao avesso, é a “mutreta”, a “cascata”, a “derrota”, a “demência”, a “ignorância”, a “força bruta” reconhecidas como nossas, endógenas, portanto, à nação. Oferecer um samba para “remediar o estrago” soa ali como também torcer para que o poder do Estado seja comandado por quem escanteie esses afetos amargos, ressentidos, odientos e segregadores que estão e que seguirão, cá e alhures, espalhados diversa e dispersamente na sociedade nacional. Pois, só à medida que tais demônios percam sua influência sobre as nossas relações interpessoais e sociais, conseguiremos soerguer uma vida cotidiana prosaica, pacífica e, quiçá, terna. Que tal?