Celso Furtado e a estrutura do levanta Brasil do Oficina

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Por José Celso Martinez Corrêa – A morte de Celso Furtado me deixou muito abalado. Eu estava duro e ao mesmo tempo preocupado de não deixar a trincheira do computador escrevendo “A Luta”, mas quis muito pegar um avião e ir ao enterro, no Rio de Janeiro. Era amigo dele e da mulher, Rosa.

Eu acho que o site deve trazer uma foto dele urgente, revelando que, enquanto ministro da Cultura -depois de a secretaria do Estado de São Paulo se recusar a colocar dinheiro nas obras do Teatro Oficina e de o Maluf ter oferecido continuar nos dando dinheiro- ele entrou em cena e mandou o Fábio Magalhães, um pintor de São Paulo, muito bom e muito amigo, se oferecer para o ministério para concluir as obras do Oficina. Veio da parte dele inteiramente!

Uma vez em Lisboa, tomei um ácido “Orange Califórnia” e fui me encontrar com ele, que estava lá também exilado, acho que na Fundação Gulbenkian.

Olhos nos olhos. Ele tinha belíssimos olhos verdes. Era um homem lindo. Eu estava na contra luz, e o sol era um lugar ao ar livre. Iluminava todo o rosto quadrado, imenso, cinematográfico dele.

Uma cara forte, bronzeada, de jagunço, com a face esculpida em pedra, rosada e bege; uma entidade que trazia em si A TERRA, O HOMEM E A LUTA, com uma coisa de réptil, de cobra, de bicho forte coriáceo.

Eu estava lisérgico, mas os alucinógenos sempre me deixam muito lúcido e apaixonado. Tive o privilégio de estar e falar com ele, ele na terceira dimensão, a do terceiro olho do teatro, como diz Nietzsche, numa viagem que evidentemente o contagiou pela energia laranja que nos envolvia, ampliada pelo sol.

Viajamos muito na cultura brasileira e na sua relação doce e direta com a economia.

O ácido, sem que ele percebesse, porque não sabia que eu estava naquele estado, nos uniu.

E, como eu conhecia muito a obra dele, e ele gostava muito de arte, fomos longe.

Foi um desses encontros que o [George Ivanovitch] Gurdjieff fala, no cosmos da vida, decisivos, sagrados, como um que tive com o João Gilberto em Nova York, tomando cogumelo de peiote do México.

Celso Furtado estruturou meu pensamento anticolonial, me passou uma visão de ferro das possibilidades de vencermos o subdesenvolvimento por meio de uma engenharia para a economia que partisse de uma visão cultural para o ser “trans-humano”, ligada ao mercado interno, ao estilo e à criatividade de nossos quadros, quer dizer, a melhor herança que nossos pais nos deixaram: Lina [Bo Bardi], Darcy Ribeiro, Oswald [de Andrade], em termos desse assunto que hoje obsedia o mundo.

Mas, no caso dele, muito específico porque sabia que os esquemas covers internacionais vindos de Breton Woods não eram metafísicos, divinos, absolutos e que a América Latina podia e pode, por seu território, cultura, formação, sua arte, criar outra economia. Por isso era tão querido internacionalmente.

Ele tinha muito de João Cabral [de Melo Neto], o mesmo rigor de pedra para construir outra pedra que certamente não era a de Pedro. Rocha Viva! As pedras de Euclides e de Nelson.

Pois não é que este poeta da economia nos ofereceu por meio do Ministério da Cultura a coluna dorsal, quer dizer, a estrutura do Teatro Oficina, as estruturas todas de ferro?!

Até então estávamos na fase do buracão, vindos da fase da desconstrução. Seu ato como ministro da Cultura deu o sentido de erguer a obra, o sinal positivo construtivista. Levantar as novas estruturas, erguer a coluna dorsal, como ele quis fazer com o Brasil.

Impedido primeiro pelo golpe de 64, depois pela política do liberalismo trazido pelo golpe.

E agora pela submissão à cultura que vitoriou o Bush: o fetiche do sistema econômico imutável. O vodu.

Ele já tinha provado que era possível. Ele e a Conceição [Tavares] que estava sinceramente comovida no enterro. Como gosto dela!

Depois ele achava que era estranho o próprio Estado de São Paulo não investir no Teatro Oficina, e tentou fazer com que isso acontecesse, mas a secretária de Cultura era a atriz Bete Mendes, que dizia que, por ser atriz, não podia representar os interesses dos artistas, seria como advogar em causa própria, ela tinha de servir o Estado?!

Mas não importa. Ele deu a estrutura para o nosso segundo nascimento, como creio que sua obra nos lega o mesmo para a estrutura que poderá levantar o Brasil, fora da posição de dominado.

Sua obra ainda -como a de Oswald, Lina, Darcy, Hélio Oiticica, Glauber [Rocha]- tem muita energia a dar para conquistarmos o Brasil que ele e nós sonhamos.

Celso é um Euclides [da Cunha] da “economia-arte”, e um inspirador desta luta para montar “Os Sertões”, mais difícil do que, às vezes acho, a Guerra de Canudos.

Temos um vídeo de uma visita dele ao teatro, num tempo que não tínhamos cimento no chão, somente terra enlameada.

Ele era sempre muito elegante. Veio muito bem vestido e acompanhado de mulheres do ministério, como uma querida atriz mineira, Priscila, que tinha os saltos muito altos. Rosa, sua mulher (eram recém-casados), também estava de saltos.

É lindo o vídeo. Marcelo [Drummond] filmou: todos atolando-se com os sapatos chiquérrimos na lama, subindo as estruturas, mas sem perder o humor.

Priscila, assessora dele, a atriz, ficou louca e começou a atuar. Foi uma tarde histórica.

Vou assinar, por causa do meu xará, Celso ExCelso José Celso Martinez Côrrea. Viva Celso Furtado!

PS: Ele dizia uma coisa muito linda. Que o candomblé era uma obra de arte, mais lindo que a cosmologia e as obras todas de Proust que, para ele, era o máximo onde um escritor podia ter chegado. Me mandou também para Paris no ano do século de Stanislavski, num encontro mundial no Beaubourg, em 1990. Só tenho amor por essa vida que em mim continua.
Merda!

Por José Celso Martinez Corrêa na Folha de S. Paulo, 2 de dezembro de 2004.