A tragédia como farsa e a ‘Nova República Velha’

A tragedia como farsa e a Nova Republica Velha
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A vida de um povo é função da enxada do trabalhador, ou do bilhete de loteria (…). A sorte das nações modernas depende da direção que tomarem no sentido do trabalho ou no sentido da especulação, da escolha entre a produção e as indústrias improdutivas, do relativo nivelamento social, pela máxima distribuição das riquezas, ou da divisão da sociedade em classes afortunadas e classes proletárias; da plena expansão dos valores, pela liberdade comercial, ou do regime de restrições e de entraves, de monopólios e de privilégios.
(Alberto Torres – O Problema Nacional)

Por Diego Abreu – Já houve quem advogasse que a história sempre se repete: seja como um conjunto de ciclos em torno de um mesmo eixo; seja primeiro como tragédia e depois como farsa. Esquematismos à parte, é inegável que a vida presente de uma nação, apesar de sujeita às circunstâncias sempre originais da realidade concreta, sempre dialoga com seu passado, revigorando ideias de outrora, redescobrindo tendências latentes e, com frequência, cometendo velhos erros novamente. Portanto, o estudo de qualquer momento da história de um povo sempre vem temperado por um sabor de déjà-vu.

O Brasil contemporâneo, marcado pelo ultraliberalismo e o cosmopolitismo vira-lata da Nova República, também nos traz ao paladar um sabor de déjà-vu, que nos remete ao retrogosto azedo da decadência opulenta e afrancesada da República Velha. Há, portanto, muito mais do que um mero jogo de palavras na expressão “Nova República Velha” apresentada no título deste artigo; trata-se de um conceito capaz de iluminar o conjunto de fenômenos sociais, interesses econômicos e forças políticas que, ontem e hoje, atuam na submissão da política nacional a esse status quo de miséria, subalternidade e atraso. O paralelismo entre a Nova e a Velha Repúblicas está em todo o lugar. É impossível olhar para os bairros nobres de nossas grandes cidades, ilhas novaiorquinas de opulência e alienação, sem recordar do projeto de revitalização urbana do Centro do Rio de Janeiro na década de 1900, que transformou a antiga Avenida Central em um pedaço de Paris em meio à miséria carioca. A mesma elite republicana da Belle Époque tropical, que passeava com casacas e smokings ingleses sob um sol de 40 graus nos teatros da capital, ainda hoje pode ser vista em algum restaurante luxuoso da Barra da Tijuca, dos Jardins ou da Litorânea de São Luís, falando sobre vinhos italianos ou reclamando das obras no aeroporto de Fort Lauderdale. Seus filhos, outrora educados por preceptores franceses e encaminhados ainda imberbes para a Sorbonne, hoje estudam em International schools bilíngues, que falam mais sobre potes de ouro no Dia de São Patrício (ou melhor, Saint Patrick’s Day) do que das delicias juninas ao pé da fogueira no São João brasileiro.

Apesar de indicativo de um processo de degeneração espiritual que, tal qual como acontecera nas primeiras décadas da centúria passada, erode a consciência e o sentido de solidariedade nacional no Brasil contemporâneo, esse paralelo entre a Nova e a Velha Repúblicas não se resume ao campo dos trejeitos e dos costumes colonizados. Consideradas algumas tendências da nossa quadra histórica e a herança do progresso vivido pelo país no século XX, não seria nenhum exagero dizer que tanto a política econômica quanto a própria organização institucional brasileira da Nova República são atualizações para o cenário de poder do século XXI dos mesmos princípios e fundamentos que orientavam (ou desorientavam) as elites brasileiras na República Velha.

A partir da consolidação do regime republicano, produzida pela convergência de interesses de grupos oligárquicos (boa parte deles vinculados à produção cafeeira), a política econômica brasileira passou a ostentar um conjunto de características que, excluídas as particularidades da época, poderiam facilmente qualificar a regência contemporânea da nossa economia. Dentre estas, vale destacar:

• A persecução de uma política monetária de enxugamento de liquidez, de caráter recessivo e de controle fiscal severo, pensada como um antídoto ao trauma do encilhamento;

• A utilização dos recursos e do aparato estatal para a salvaguarda dos interesses econômicos da oligarquia hegemônica, atrelados à monocultura do café;

• A ascensão de setores especulativos que, vinculados ao comércio dos produtos primários e importação dos bens não-produzidos no país, atuavam como uma força de drenagem das energias produtivas da Nação para a manutenção de seus privilégios.

Apesar de o resultado catastrófico da emissão descontrolada de títulos de crédito executada pelo Ministro Rui Barbosa ser hoje apenas uma memória vaga na consciência nacional, a Nova República também teve um encilhamento para chamar de seu: a hiperinflação e o caos na política monetária das décadas de 1980-1990. A consequência de ambos os processos foi o abandono de qualquer ambição estatal de utilizar os mecanismos de indução fiscal, monetária e creditícia para fins de desenvolvimento e a captura do timão da economia nacional por setores oligárquicos interessados na manutenção do trinômio: arrocho, especulação e embargo das atividades produtivas. A política de valorização artificial do preço do café também foi resgatada. Porém, a commodity que prosperou no Vale do Paraíba e no Oeste Paulista foi substituída por um produto bem menos palpável, mas não menos rentável: a agiotagem usurária. Enquanto, na República Velha, a política de valorização artificial do preço do café viabilizava a captura do erário público por setores monopolistas, a Nova República aprimorou a arte de apropriação de recursos coletivos para bolsos oligárquicos, prescindindo, inclusive, da própria necessidade de haver alguma atividade produtiva que justificasse tamanha transferência de renda. A manutenção de uma taxa de juros básica pornograficamente elevada e a manutenção de um labirinto de relações promíscuas entre os órgãos estatais diretores da economia e a oligarquia financeira nacional, mecanismos responsáveis pelo esgoto de grande parte do élan produtivo do país, é a adaptação ao neoliberalismo financista do século XXI da política de valuation do café – com a inconveniência de que esta nem ao menos traz as divisas e o saldo comercial viabilizados por aquela. Por fim, a submissão da economia produtiva aos setores da especulação também marca a Nova República Velha. Estes, outrora sediados nos empórios comerciais e bolsas de importação da Capital, hoje transitam pelos salões da elite financeira transnacional, representando seus interesses em nossas latitudes.

A institucionalidade política do Brasil hodierno, esqueleto estruturador da vida nacional, também compartilha dos mesmos vícios e patologias da República Velha. Os velhos partidos provinciais da virada do século passado, verdadeiras máquinas de loteamento político e devaneio retórico, hoje foram substituídas pela fisiologia perdulária e pela esquizofrenia dos “militantes da Guerra Cultural”. O objetivo de ambos os arranjos políticos, tanto ontem quanto hoje, é o mesmo: criar um aparato de salvaguarda dos privilégios e dos interesses das oligarquias mandantes protegido por um teatro de devaneios e loucuras, cuja única função prática é atentar contra os elementos imateriais que unificam o país. Por sua vez, o federalismo fragmentador brasileiro, chamado de “desmembramento disfarçado de federação” pelo grande Alberto Torres, reduz a política nacional a uma colcha de retalhos de interesses de oligarquias provinciais, que veem com hostilidade qualquer empenho de recursos fora de sua zona de influência. Contudo, além de desunir o país, o federalismo dispersivo brasileiro cria o ambiente perfeito para a criação de rusgas entre os estados e municípios que formam a nação. Guerras tributárias, animosidades comerciais, disputas em torno de gargalos ficais, paralisação de obras de integração: esse é o legado do federalismo antinacional vigente na Nova República Velha.

Comprovado o paralelismo evidente entre as Nova e Velha Repúblicas, convém indagar que forças políticas e variáveis históricas seriam as responsáveis pelo retorno cíclico desse arranjo político de pauperização e degeneração nacional. Uma inteligência que pode nos iluminar nesse esforço é o, já citado, Alberto Torres. Analisando o Brasil de seu tempo, o jurista fluminense assinalava como grandes algozes do desenvolvimento do país duas franjas da elite econômica atuante no país, regidas por interesses convergentes e complementares: o imperialismo estrangeiro e o argentarismo. O imperialismo estrangeiro, que no Brasil de Torres se apresentava, dentre outras formas, na figura de grandes conglomerados econômicos responsáveis pela exploração predatória de recursos minerais das nossas terras, no mundo contemporâneo se emancipou de suas raízes nacionais, convertendo-se em uma força transnacional e, essencialmente, antinacional. Com sua agenda de ultraliberalização, precarização das atividades produtivas e pasteurização cultural, o imperialismo cosmopolita do Fórum Econômico Mundial anseia pela consecução da mesma agenda perseguida outrora pelos Trustes e Holdings internacionais, tão combatidos pelos nacionalistas de velha cepa: a rapina das riquezas brasileiras e a manutenção do país em um estágio permanente de miséria e caos. Já o termo argentarismo denomina os setores internos da sociedade brasileira que, aliados ao capital internacional, especulam contra o país, seu povo e sua economia através de operações financeiras e creditícias. Seriam os correlatos de antanho do financismo farialimer, que, atuando em linha com interesses estranhos e, por vezes, antagônicos aos anseios nacionais, agem como um fator interno de corrosão do tecido social e das forças econômicas do país. Portanto, no caso brasileiro, a remissão da engrenagem política da República Velha na Nova República não se deve a qualquer misticismo panteísta ou esquematismo ideológico. Pelo contrário: ela é fruto da ação de grupos políticos que, apesar de separados pelo abismo de quase um século, ainda comungam dos mesmos interesses contrário às maiorias e preservam as mesmas alianças espúrias.

Todavia, apesar das interfaces flagrantes, é preciso assinalar a existência de uma diferença substantiva entre a República Velha original e sua recauchutagem contemporânea. Enquanto o federalismo torto e o argentarismo parasitário vividos por Alberto Torres conviviam com um mundo ainda dotado de fronteiras relativamente estáveis e fragmentado em áreas bem delimitadas de influência de potências, o mundo em que habitamos possui um caráter bem mais emaranhado e, por isso mesmo, muito mais perigoso. O desenvolvimento tecnológico, incorporado de forma autoritária pelas oligarquias financeiras que mandam em boa parte do planeta, permite que o raio de ação e a capacidade de influência desses grupos se potencialize de uma maneira formidável. Logo, se era possível no passado o Brasil se organizar econômica e politicamente de uma maneira disfuncional e ainda manter algum grau de soberania, no mundo de hoje, tal estatuto deixa o país em uma condição de extrema vulnerabilidade perante poderes vadios, que não apenas veem com bons olhos a destruição material do país, mas também estão comprometidos de forma programática com essa agenda. Portanto, a Nova República Velha submete o Brasil a um estado de maior subalternidade ao financismo transnacional, empoderado pela posse de uma máquina capilarizada e eficiente de intervenção e guerra híbrida.

Em face do cenário traçado nos parágrafos anteriores que denuncia a hegemonia da Nova República Velha, o leitor que me acompanha pode se indagar: afinal, qual o caminho para a superação desse arranjo político que, ciclicamente, atenta contra as estruturas do país. Para vislumbrarmos uma alternativa ao ultraliberalismo da Nova República, nada melhor que voltarmos nossos olhos para a força política que destruiu o oligarquismo autoritário da República Velha. Ainda que o golpe definitivo na estrutura política das elites provinciais tenha sido dado pela Revolução de 1930 e a construção do varguismo ao longo da mesma década, é inegável que o movimento político que culminou na marcha até o Catete foi antecedido por um período de rica fermentação de ideias e manifestações estéticas que tinham no amor ao Brasil e no otimismo em relação ao país o seu eixo principal. Desde o pensamento de grandes intelectuais como Alberto Torres, Sílvio Romero e Manuel Bomfim até o patriotismo militante de Olavo Bilac, passando pela efervescência cultural e artística dos movimentos modernistas na década de 1920: cada uma dessas declarações de esperança nesta terra ajudou a pavimentar o caminho trilhado pela Aliança Liberal sob o comando de Vargas.

Em um momento de desilusão em face do estado de absoluta degradação observável em todos os aspectos da vida política nacional, a consciência acerca dos caprichos cíclicos da Deusa Clio, antes de nos amedrontar, deve nos encher de fé na possibilidade de um Brasil melhor. Se, por um lado, os mesmos grupos políticos que produziram a República Velha se levantaram com a ascensão da Nova República Velha; as forças nacionais que cerraram fileiras com o trabalhismo para derrubar o oligarquismo também se encontram vivas em nossa sociedade, apesar de seu caráter politicamente latente. Ainda há no Brasil um povo que se identifica com esta terra, que ama seus costumes e seus valores e tem seu futuro completamente vinculado ao futuro do país. Ainda temos forças econômicas e políticas organicamente atreladas à Nação, cuja existência a médio prazo depende de uma mudança radical de curso na organização da vida nacional. Falta-nos, no momento, intérpretes desses anseios: pessoas e grupos que, em todos os terrenos da sociedade, catalisem essas aspirações dispersas e as organizem em um verdadeiro movimento de superação deste arranjo político que vem destruindo o país. Quem sabe, em meio a essas tantas reviravoltas cíclicas da história brasileira, a Nova República Velha não possa ser uma anunciação de uma Nova Era Vargas, constituída do mesmo conjunto de forças e esperanças que refundaram o Brasil em 1930.

Por Diego Abreu

REFERÊNCIAS

TORRES, Alberto. A Organização Nacional (Série Brasiliana). Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1938.

TORRES, Alberto. O Problema Nacional Brasileiro: Introdução a um programa de organização nacional. (Série Brasiliana). Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1938.