Debatendo o “Capitalismo de Estado” na Turquia: para além de falsas dicotomias

Debatendo o "Capitalismo de Estado" na Turquia: para além de falsas dicotomias
Botão Siga o Disparada no Google News

Por Mehmet Erman Erol – Após a tentativa fracassada de golpe de 2016, e no contexto de crescente desconfiança em relação ao Ocidente, o presidente da Turquia, Erdogan, refletiu seu descontentamento com a União Europeia (UE) e argumentou que a Turquia deveria se juntar aos Cinco de Xangai, ou seja, a Organização de Cooperação de Xangai (SCO) liderada principalmente pela China e a Rússia. Logo depois, apesar de ser membro da OTAN, a Turquia assinou um acordo com a Rússia para a compra do sistema de mísseis de defesa aérea S-400. Tomados em conjunto com outras “aventuras” da Turquia em sua região, esses desenvolvimentos foram percebidos como manifestações de uma mudança na economia política da Turquia e foram profundamente perturbadores para as potências ocidentais. Afinal, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a Turquia foi um aliado próximo do bloco capitalista ocidental liderado pelos Estados Unidos, e continuou a sê-lo durante a Guerra Fria; e permaneceu muito próxima dos interesses dos EUA e da UE após o fim da Guerra Fria em 1991.

Debatendo o "Capitalismo de Estado" na Turquia: para além de falsas dicotomias

Para alguns[1], esses desenvolvimentos estão relacionados à ordem mundial em transformação e à mudanças no poder global após a crise de 2008, já que o declínio da ‘ordem internacional liberal’ e a ascensão dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) marcaram transformações da economia política global. Consequentemente, há uma tendência para explicar a economia política tardia da Turquia neste contexto. Argumenta-se que, nesta “ordem internacional pós-liberal”, em que duas economias políticas concorrentes vêm à tona, a Turquia está se movendo em direção ao “Leste” ou ao “não ocidente” – principalmente China e Rússia. Como tal, o envolvimento da Turquia com “grandes potências” não ocidentais (que geralmente são caracterizadas por um “capitalismo de Estado autoritário” em oposição à “economia política neoliberal” / democracia liberal / “capitalismo democrático” do Ocidente), molda a economia política da Turquia e abre caminho para o “autoritarismo”, a “democracia iliberal” e o “capitalismo de Estado”. Em outras palavras, como a crise de legitimidade do “neoliberalismo ocidental” o torna menos desejável para países como a Turquia, considera-se que a Turquia se desviou do neoliberalismo e da democracia liberal e mudou para o capitalismo de Estado e o autoritarismo.

Esses relatos parecem fornecer um quadro coerente, e esses argumentos são apoiados por vários exemplos que demonstram o aumento do autoritarismo e mudanças nas políticas econômicas. Por exemplo, a transição da democracia parlamentar para um ‘presidencialismo ao estilo russo’, o aumento da intervenção econômica do Estado (por meio do recém-criado Fundo de Riqueza da Turquia e da intensificação de ‘práticas de compadrio’), o abandono da política econômica baseada em regras e fim de facto da independência do Banco Central, bem como os processos de ‘deseuropeização e desocidentalização’, estão todos relacionados a essa mudança de paradigma. Também se argumenta que ainda existem elementos de continuidade com o período “neoliberal” anterior; mas as práticas capitalistas autoritárias de Estado são muito mais proeminentes na formação do caráter da economia política tardia da Turquia sob o governo do Partido da Justiça e Desenvolvimento (“o AKP”).

Apesar de compreender aspectos significativos da transformação da economia política global, esses relatos sofrem de falhas essenciais. Estas incluem vários “dualismos” e dicotomias problemáticas, como nacional e global, Estado e mercado (ou capitalismo de Estado e capitalismo liberal democrático), autoritarismo e democracia, todos os quais não são entendidos relacionalmente. Em primeiro lugar, elas compartilham implícita ou explicitamente a perspectiva que eu chamo de “o bom AKP vai mal”. Como tal, os primeiros anos do AKP na década de 2000 são caracterizados por uma economia política progressista e “democratização” apoiada pelo Ocidente, bem como por um neoliberalismo “social” e regulatório, enquanto os anos 2010 são caracterizados pelo autoritarismo sob a influência de potências não ocidentais. O autoritarismo neoliberal dos períodos anteriores é descartado. Em segundo lugar, como Alami e Dixon criticaram em outro lugar, sugere-se uma dicotomia muito clara de ‘capitalismo de Estado’ e ‘neoliberalismo/capitalismo de mercado livre’ como duas economias políticas radicalmente diferentes. Uma imagem idealizada do capitalismo de livre mercado ocidental, onde o Estado liberal democrático não interfere na economia (ou esta intervenção é bastante limitada), é retratada em contraste com o capitalismo de Estado autoritário do Oriente, que é caracterizado pela forte intervenção econômica do Estado, regimes tirânicos e fracos freios e contrapesos. Terceiro, uma dicotomia Estado-mercado é enfatizada e (ou seja, o mercado era dominante nos anos 2000 e o Estado é dominante nos anos 2010), portanto, a noção de classe está ausente nessas análises. Quase não há uma análise da reestruturação do mercado de trabalho e da sua continuidade. Quarto, argumenta-se que a recente turbulência econômica na Turquia desde o verão de 2018 é, de certa forma, resultante dessas práticas capitalistas de estado, não do neoliberalismo em si.

Deveríamos levar a sério os desenvolvimentos, mudanças e ambiguidades recentes na economia política da Turquia, e as tentativas de conceituar e dar sentido a esses desenvolvimentos são úteis. No entanto, como Nicos Poulantzas disse uma vez, “conceitos e noções nunca são inocentes”. Afirmo que isso precisa ser feito por meio de conceitos e noções críticas que nos permitam ver as continuidades no ativismo estatal, que “se esforça para gerenciar a força de trabalho, o dinheiro e a terra/natureza de maneiras consistentes com a reprodução capitalista expandida”. Economistas políticos críticos tendem a conceituar esses desenvolvimentos e dar sentido às novas formas de neoliberalismo sob disfarces nacionalistas e autoritários-desenvolvimentistas. Além disso, a recente turbulência na gestão econômica do governo do AKP e uma “reviravolta” tanto no discurso quanto na política demonstram o valor contínuo de conceitos críticos, como “financeirização dependente/subordinada“.

Nesse contexto, o conceito de capitalismo de Estado em sua atual forma renovada desde o final dos anos 2000 não é crítico e seu valor analítico permanece fraco; e no contexto turco equivale a um exagero de práticas que refletem uma gestão de crise contraditória por parte do Estado capitalista. Até que ponto a continuação das finanças liberais e regimes comerciais (abertura contínua da conta de capital e adesão à União Aduaneira da UE; apesar dos “controles brandos” ocasionais contra crises monetárias e do protecionismo brando em linha com as tendências globais), financeirização, privatizações em andamento, desregulamentações e flexibilização dos mercados de trabalho marcam uma ruptura real? Em que medida eles merecem o termo “capitalismo de estado”? Ou, como Bedirhanoglu coloca, o argumento da “mudança de eixo” resiste ao escrutínio se os compromissos políticos e de defesa da Turquia com o Ocidente forem levados em conta?

Periodizações arbitrárias e dicotomias falsas geralmente levam a concepções errôneas que não conseguem compreender os processos complexos, contraditórios e desiguais do capitalismo, sua totalidade e conexões internas. Como consequência, o valor analítico desses conceitos permanece muito limitado. Isso também é importante por razões políticas e tem implicações políticas significativas. Qual seria uma resposta progressista às crises em curso na Turquia? As recentes observações do presidente Erdogan de que a Turquia vê seu futuro na Europa seriam bem-vindas por comentaristas que sustentam suas críticas com o argumento do “capitalismo de Estado autoritário” e endossam o “capitalismo democrático” e os “valores e normas fundamentais da UE”, incluindo a “economia de mercado baseada em regras” . Uma visão mais progressista, no entanto, implica desenvolvimento/estratégias mais radicais e centrados no trabalho e que desafie e vá além dos paradigmas convencionais existentes.

Por Mehmet Erman Erol, pesquisador de Pós-doutorado na Universidade de Cambridge.

Texto originalmente publicado em Developing EconomicsDebating ‘State Capitalism’ in Turkey: Beyond False Dichotomies – Developing Economics.

Traduzido por Ricardo Begosso.

Referências

Referências
1 Os trabalhos aos quais faço referência aqui no contexto do capitalismo de Estado na Turquia são produzidos pelos proeminentes economistas políticos turcos Ziya Onis e Mustafa Kutlay. Ver Öniş (2019), Kutlay (2020) e Öniş & Kutlay (2020)