Em uma série de dois artigos publicados originalmente no blog Valor Adicionado, a economista e pesquisadora Milene Tessarin resume um estudo que realizou sobre o perfil de inovação empresarial na indústria brasileira entre os anos de 2003 e 2014. Para traçar a análise, ela utilizou dados da última edição da Pesquisa de Inovação (Pintec) do IBGE. Neste artigo, pretendemos fazer uma breve leitura dos resultados alcançados por Milene Tessarin à luz da leitura e das ideias de Roberto Mangabeira Unger.
A razão para tentar estabelecer esta conexão é que, entre as afirmações de Milene Tessarin, está a relação entre inovação e cooperação.
Dados da Pintec
Analisando informações levantadas pela pesquisa do IBGE, a economista percebe que apenas um terço das empresas brasileiras que atuam na indústria de transformação estão na categoria empresas inovadoras. Dentre as inovadoras, Tessarin afirma que a imensa maioria delas inova sem cooperação. “Em 2014, de cada 100 empresas da manufatura brasileira: 30,7 inovaram sem cooperação e apenas 5,6 inovaram com cooperação”, afirma ela.
Em sua definição, a cooperação neste caso significa a participação ativa de empresas em projetos conjuntos de pesquisa e desenvolvimento com outras empresas ou organizações de outro tipo (universidades, centros de pesquisa etc.). “A cooperação para inovar permite às partes envolvidas ampliar a base de conhecimento, acelerar a inovação, reduzir riscos e incertezas tecnológicas, acessar recursos produtivos e técnicos distantes ou indisponíveis, trocar conhecimentos e tecnologias com outros especialistas e capacitar-se para processos mais eficientes”.
A economista avança na análise para perceber resultados concretos que favorecem a inovação com cooperação. Ela aponta, sempre com dados da Pintec IBGE, que em 2014 as empresas que inovaram com cooperação detiveram 46% da receita líquida com vendas do total de empresas estudadas, e realizaram 62,5% dos gastos com inovação. Por outro lado, as empresas que inovaram sem cooperar contribuíram com 25,2% da receita líquida de vendas e com 37,5% dos gastos com inovação. Para termo de comparação, as não inovadoras detiveram 28,8% da receita líquida de vendas naquele ano (portanto, levemente acima das inovadoras sem cooperação).
O argumento em favor da cooperação para inovar é bastante reforçado quando, no segundo artigo da série, Milene Tessarin avalia como se dá a inovação nas empresas industriais brasileiras.
Entre aquelas que não cooperaram (período analisado de 2012-2014), 67% da inovação foram representados por aquisição de máquinas e equipamentos, enquanto o item pesquisa e desenvolvimento representou 15% de sua inovação.
Já entre aquelas que cooperaram para inovar, o gasto com aquisição de máquinas e equipamentos como inovação cai para 34%, enquanto a inovação por pesquisa e desenvolvimento sobe para 43%.
Cruzando-se estas informações com os resultados concretos em termos de receita líquida de vendas no mesmo período analisado, tem-se uma tendência clara que afirma e aponta a vantagem das empresas industriais que inovam cooperando sobre aquelas que inovam sem cooperar, no Brasil, no período analisado.
Para aqueles que não acompanham de perto o debate sobre indústria no Brasil e demais países em desenvolvimento, talvez pareça que quando se advoga em favor da sofisticação produtiva das indústrias nacionais, o objetivo seja promover o enriquecimento de empresas privadas. Esta visão – limitada e preconceituosa – não percebe a real importância de uma indústria de ponta para uma economia em desenvolvimento.
Defender a sofisticação do tecido produtivo de uma sociedade como a brasileira significa defender empregos formais que são sempre mais bem remunerados, qualificação da mão de obra, formação e retenção de renda na base da pirâmide social, impactos secundários benéficos em economias locais, superávits comerciais para o país, maior equilíbrio cambial e resistência a choques econômicos, maior independência econômica, maior capacidade de defesa econômica, defesa política e defesa militar. Industrialização de ponta é, portanto, o mesmo que redução de desigualdades sociais e soberania política e econômica de um país.
Mangabeira Unger
Para leitores de Roberto Mangabeira Unger, os achados de Milene Tessarin têm muita lógica e não surpreendem.
O grande pensador do mundo da produção e do trabalho contemporâneo disserta longamente sobre cooperação e inovação em variadas ocasiões. Em especial, destacamos o livro “A Economia do Conhecimento”. Nele, Mangabeira argumenta que a história das teorias econômicas tem sido sempre uma análise da prática mais avançada de produção ao tempo da análise. Hoje, segundo ele, a prática mais avançada de produção é o que ele chama de Economia do Conhecimento.
Ao caracterizar e tentar definir a Economia do Conhecimento, Mangabeira foge da superficialidade. Nega que isto esteja ligado apenas às tecnologias digitais aplicadas à produção, afirmando que o conjunto de práticas e conceitos desta nova economia está hoje isolado em franjas altamente elitizadas do processo produtivo mundial. Este isolamento, segundo ele, vem condenando setores econômicos e até economias inteiras ao baixo crescimento e à ampliação das desigualdades, dado que os benefícios de produtividade da prática mais avançada do mundo contemporâneo estão encapsulados e hegemonizados por elites corporativas transnacionais.
Todo seu esforço é direcionado para argumentar que o conjunto de práticas e conceitos da Economia do Conhecimento tem aplicabilidade em qualquer setor econômico (e não apenas na vanguarda digital e todos os seus subsetores). Ademais, emprega grande esforço em achar e demonstrar os elementos deste conjunto de práticas e conceitos. Segundo ele, o isolamento da Economia do Conhecimento em elites corporativas agrega exatamente esta dificuldade adicional: a caracterização mesma da prática produtiva mais avançada do mundo contemporâneo ainda está por fazer-se. É a isto que se dedica Mangabeira Unger.
Um dos traços mais definidores da Economia do Conhecimento, de acordo com Mangabeira Unger, é a cooperação produtiva contínua. Citamos aqui um trecho de “A Economia do Conhecimento”.
“A prática de produção intensiva em conhecimento viceja sob inovação contínua, ao invés de simplesmente episódica. (…) Ela resiste à divisão entre cooperação e concorrência como domínios distintos de ação e, ao contrário, baseia-se na concorrência cooperativa – mistura fluida de cooperação e competição – dentro das empresas e também entre elas. Estas observações sugerem que entre as bases da economia do conhecimento está uma acumulação de capital social – densidade de associação – e um abrandamento da tensão entre a disposição para cooperar e a necessidade de inovar”.
Neste curto espaço, não há como pretender algo além de uma simples aproximação entre os dados apresentados por Milene Tessarin e a obra teórica de Roberto Mangabeira Unger. No entanto, acreditamos que o maior valor seja o de estimular o debate sobre a industrialização brasileira em novos marcos. E, para esta finalidade, ambos são uma necessária leitura.