Caminho histórico e falsos dilemas de Ciro Gomes

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Por Leandro Nogueira dos Reis – Como militante trabalhista e compartilhando da responsabilidade pelo bom encaminhamento do debate público, com sua devida clareza e rigor conceitual, não poderíamos deixar de apresentar este contraponto ao artigo da Maria Eva Angelim, ‘Os dois caminhos de Ciro Gomes’, publicado no Disparada na sexta, 29. Reconheçamos de pronto que seu texto possui inúmeras qualidades, pois traça de forma precisa e detalhada, dentro dos limites em que se formata o debate, os principais fatores que influenciaram nosso processo político de 2013 ao momento atual. Por este motivo, inclusive, não pretendemos repisar os pontos pelos quais ela passa, como o desenrolar do processo eleitoral de 2018, as tendências apontadas pela conjuntura internacional, ou as mudanças de posicionamento de agentes específicos no nosso ambiente político. Qualquer consideração a este respeito traria no máximo divergências muito pontuais.

Julgamos que, no geral, ela descreve um cenário bem acertado da conjuntura recente ou atual. Daí a força de afirmações que, não sendo segredo pra militância, parecem não estar claras pra muitos analistas ou operadores políticos. Exemplo é o reconhecimento de que a ruptura com o PT e a criação de uma corrente autônoma de centro-esquerda se deram por um imperativo da realidade, em processo histórico que não se dá por capricho nem tampouco sem contusões. Isto dito, encaminhamos nossas considerações. É verdade que Ciro Gomes aponta uma ruptura profunda com um modelo econômico fracassado e procura dialogar com a centro-direita. É verdade que nossa militância disputa a legitimidade tanto de uma propositura de esquerda quanto de um nacionalismo autêntico; mas não entabulamos tais disputas ou assumimos determinadas posições por indecisão ou para nos contrapormos a fulano ou sicrano, e sim porque é como nos aconselha as conjunturas políticas ou as teses históricas do trabalhismo.

Somos obrigados a dizer, portanto, que onde ela aponta contradições ou indecisões, nós vemos as contradições da própria realidade e o perigo de cair na armadilha dos adjetivos em sua superficialidade. Neste sentido, embora a autora desenvolva bem sua análise ou descrição dos eventos que marcam nossa história recente, julgamos que ela tropeça em suas conclusões. E tropeça por incorrer em falsos dilemas, os quais, em um esforço de sistematização, poderíamos dizer que se desdobram ou refletem em ao menos três aspectos da dimensão política: no discurso ou mensagem político-eleitoral; na concepção de governança política; e no diagnóstico ou crítica do modelo econômico.

Na análise do processo eleitoral de 2018, que a autora fez tão bem, ela nos dá a exata dimensão do papel que tiveram os dualismos petismo/antipetismo, assim como o sistema/antissistema. Inclusive pontua corretamente a importância que tiveram na eleição de Bolsonaro, que encarnou melhor ambos os antagonismos, conta o PT e contra o que vagamente se chama sistema. Com relação ao Ciro ela reconhece tanto os motivos que o impediam de encarnar, naquele momento, o antipetismo, quanto as decorrências que hoje o colocam em franca oposição ao lulopetismo. Por outro lado, parece cobrar, ainda hoje, que Ciro tenha uma definição mais clara entre ser pró ou antissistema. Ora, se nem na retórica eleitoral esta simplificação binária nos parece necessária, suficiente ou digna de naturalização, quem dirá nos aspectos político-econômicos, que são os que esclarecem e dão sustentação ao discurso.

Encaremos as questões com a complexidade que elas requerem. No que afeta a concepção de governança política, a autora aponta como dilema o fato de Ciro criticar o modelo econômico e buscar diálogo com a centro-direita. Em suma, coloca a necessidade dele escolher entre uma mudança radical com transformações profundas ou uma mudança segura a partir do diálogo e da criação de consenso. A nosso ver esta antinomia sequer tem cabimento, refletindo simplesmente um problema mal colocado. Não se trata de construir ou não consensos, e sim de questionar qual o consenso necessário e possível pra levarmos adiante as transformações propostas. É como se faz na democracia, contemplada na segunda letra da sigla PDT. E a propósito, mesmo antes da refundação do partido não se pode duvidar que Getúlio (com todo seu legado de industrialização, instituições e direitos) ou Jango (com a proposta das reformas de base) pretendiam reformas profundas na sociedade. Tampouco se pode negar que, mesmo com as tensões da época, encerrado o Estado Novo o trabalhismo nunca tenha adotado saídas que não pelo convencimento, pela legalidade e pela democracia.

Daí caímos na crítica do modelo econômico, que também nos ajuda a compreender a importância do consenso. Na esteira do que aponta como a indecisão do Ciro, mencionada acima, a autora trata como ilusão a separação que ele faz entre capital produtivo e financeiro. Outro problema mal colocado ou tratado superficialmente. O próprio Ciro tem protagonizado a crítica de que, com os juros mais altos que o rendimento médio dos negócios, o capital produtivo tem migrado para o rentismo e este se apropriado das empresas. Isto porém é a distorção ou sintoma cujas causas devem ser analisadas. Não se trata de fazer uma crítica moral do capitalista sem criticar e alterar as institucionalidades que permitem ou determinam a busca do lucro fácil.

Alguém duvida que o setor financeiro, responsável pelo rentismo, e o setor produtivo, por este sufocado, ocupam funções diversas e necessárias em qualquer sociedade? Alguém desconhece o fato de que o capital se guia pelo lucro e que este pode ser incentivado ou tachado por decisões que se dão no âmbito político? Poderíamos encadear uma série interminável de questões, o que importa, entretanto, é o fato de que o local ou setor em que os recursos são investidos não é indiferente na dinâmica econômica de uma sociedade. Importa o fato de que havendo margem de lucratividade, e aqui entra o papel regulador do estado, nenhum capital é avesso a qualquer tipo de investimento. Importa o fato de que, mesmo capturada pelo lobby do rentismo, isto não significa que nossa classe política, com todos os seus defeitos, seja ela mesma em sua maioria a detentora do capital ou esteja atrelada inexoravelmente aos interesses da especulação.

Com isto queremos reforçar a impertinência de se questionar a ideia de consenso em si mesma. Aliás, pelas próprias características das relações de poder, talvez não seja exagerado considerá-la uma variável irremovível da realidade, pois mesmo em um regime autoritário e excludente, a diversidade de interesses conflitantes demandam um mínimo de consenso, ainda que de modo implícito. Cabe nos questionar, portanto, não sobre a importância ou necessidades de consenso de modo geral, mas sobre o tipo de consenso que pretendemos construir, suas condições de possibilidade, os interesses contemplados e as bases que lhe dão sustentação. Sobre este assunto aprendemos com Bresser-Pereira, n’A Construção Política do Brasil, o quanto a própria história nos fornece a chave. Se o pacto liberal sob o qual vivemos associa interesses de uma burguesia mercantil e rentista com os interesses do capital internacional; a experiência nacional-desenvolvimentista, com variações históricas que incluíram ou excluíram as classes trabalhadoras, sempre precisou de alianças mais amplas, envolvendo setores da classe média ligados ao funcionalismo público, pequenos produtores e parte do setor produtivo, com destaque ao industrial.

Devemos ter claro, neste aspecto, que a esquerda que contribuiu, de fato, com um legado para o nosso desenvolvimento sempre foi popular e nacionalista (Se o pacto nacional-desenvolvimentista, acima descrito, vai de Getúlio ao final do regime militar, lembremos que só a primeira etapa é considerada populista). Queremos destacar com isto que não há contradição alguma no fato da esquerda trabalhista não se encaixar em esquemas binários importados e pouco afeitos à história nacional. Ela não deve nada a uma esquerda que despreza o consenso e, por trás de um suposto radicalismo, esconde uma atitude purista inócua e masturbatória – nos referimos aqui ao que Lenin tacha doença infantil e Arregui chama “izquierda cipaya”. Também não tem nada a ver com uma auto-referida esquerda que se rendeu ao rentismo e ao tripé macroeconômico; que a autora confunde, no discurso de Mauro Benevides, com os valores da responsabilidade fiscal e da austeridade, representados pelo bom uso do dinheiro público.

Enfim, se há lições que podemos aprender com o trabalhismo é que, como diria Brizola, na carroceria do caminhão sempre cabe muita gente, mas os que estiveram na boleia nunca deixaram de defender “Reformas de Base” com feições próprias de sua época. Reformas que, sem sombra de dúvida, transformaram ou transformariam nossa sociedade de modo significativo. E como podemos verificar no projeto apresentado por Ciro Gomes, atual representante do fio trabalhista, não seria agora que propostas de transformações profundas e a necessidade de se construir maioria por meio de consensos se veriam dissociadas na política. Não vemos pertinência neste suposto antagonismo. Nem no que toca à redução das possibilidades a dois caminhos que não reconhecemos como nosso, e muito menos na necessidade de escolhermos entre um deles. Eleitoralmente o que propomos é uma alternativa com projeto e que recuse o personalismo vazio. Politicamente nossa crítica é que, salvo diferenças pessoais, os dois polos adotam as mesmas práticas fisiológicas. Substituem por benesses o desafio democrático de formar maiorias pelo convencimento, isto é, pela negociação aberta de interesses múltiplos e conflitantes.

Economicamente, também, não há dois caminhos que hegemonizem o debate ou disputem as preferências, pelo contrário. Em um contexto em que Lula e Bolsonaro se acotovelam pra executar o programa neoliberal (variando aqui somente as personalidades), o que temos é o esforço de Ciro Gomes para apresentar uma alternativa viável, bem delineada desde 1996. Tampouco se coloca a antinomia reforma/revolução, já desmistificada por Guerreiro Ramos ao definir a revolução como conjunto das reformas necessárias à emancipação do povo. O que vemos, portanto, é a necessidade de superar certos binarismos ou falsos dilemas. A necessidade de entrar em águas mais profundas e perceber que, para além dos fenômenos mais imediatos, existe um acumulado de história e teses.

Por Leandro Nogueira dos Reis

  1. Parabéns por expor que a realidade é bem complexa e apenas relembro um fato dessa complexidade:

    O PSDB surgiu de uma corrente mais à esquerda do PMDB na época da redemocratização e estavam nessa corrente Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Tasso Jeirissate, Ciro Gomes, Aécio Neves, Mário Covas, etc… Ocorre que na eleição de 1994 o FHC se associa com o PFL (decorrente de egressos da UDN/Arena/PDS com figuras como ACM e Marco Maciel e que depois se renomeou DEM e agora União Brasil). Depois de eleito associado com ACM e Marco Maciel, FHC foi a continuação da guinada neoliberal iniciada com Collor (e ainda tem polêmica frase atribuída a FHC: “Esqueçam o que escrevi”).

    O Ciro Gomes (que participou do PSDB naquele momento como governador e era atuante na cúpula do partido naquele momento) está no PDT mas em 2018 cortejou o PFL (depois que não aceitou ser vice do Lula e caso se consumasse o golpe da Farsa a Jato seria a cabeça de chapa com Haddad como vice em uma chapa denominada como “chapa dos sonhos”, mas que não foi aceita pelo Ciro na época) corteja e busca se associar com… ACM Neto (neto daquele mesmo ACM do PFL e sempre do lado do Capital), além de Datena do PSL e talvez Alkimin em SP.

    Será que nessa realidade complexa, onde no Brasil vige principalmente desde 2015 um “parlamentarismo de fato”… Será não haveria influência anti-trabalhista (ou anti-Brizolista) com essa possível associação?

    A realidade é bem complexa mesmo, muito mais que algumas receitas de bolo…

  2. Tiago Silva, vc só esqueceu de dizer que Ciro saiu do PSDB justamente porque não concordou com a política neoliberal do partido. A enorme diferença entre PDT e PSDB começa no programa e no estatuto, meu caro. FHC guinou porque quis! Nada que se possa atribuir ao PFL/DEM.
    Ciro e PDT tem um projeto claramente delineado, e o projeto é desenvolvimentista, com interferência sim do Estado no fomento, com defesa sim do patrimônio nacional e contra as privatizações especulativas, com defesa do direito do Trabalho, com defesa sim da revogação do teto de gastos etc. Sugiro que vc leia o ‘Dever de Esperança’.

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