Brasil e saúde mental: A inevitável crise

O Brasil, assim como boa parte do mundo, pautou a oferta de assistência em saúde mental na institucionalização de pacientes. Conhecido como modelo manicomial, tal prática tinha como pressuposto o olhar médico como único modo de avaliação e direção ao tratamento. A medicalização e os procedimentos médicos esgotavam o arcabouço de práticas possíveis para conduzi-lo. Na vigência do modelo observou-se desrespeito aos direitos humanos e utilização dessa estrutura para fins políticos e econômicos. Como resultado, tivemos a quebra de vínculo de pacientes com suas famílias, perda de autonomia, pouca ou nenhuma efetividade terapêutica e a consolidação do estigma da figura de pessoas com transtorno mental. A lógica presente nos hospitais psiquiátricos era a mesma para a saúde como um todo, ou seja, centrar-se no tratamento de sintomas, referenciar-se pelo equipamento hospital e ter os equipamentos voltados aos mais pobres administrados por instituições religiosas. Um exemplo triste deste cenário foi o Hospital Colônia de Barbacena, conhecido como o Holocausto Brasileiro. Muito se lutou para mudar este cenário, entretanto hoje observamos retrocessos e dificuldades que comprometem os avanços conquistados.
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Por André Teixeira – O Brasil, assim como boa parte do mundo, pautou a oferta de assistência em saúde mental na institucionalização de pacientes. Conhecido como modelo manicomial, tal prática tinha como pressuposto o olhar médico como único modo de avaliação e direção ao tratamento. A medicalização e os procedimentos médicos esgotavam o arcabouço de práticas possíveis para conduzi-lo. Na vigência do modelo observou-se desrespeito aos direitos humanos e utilização dessa estrutura para fins políticos e econômicos. Como resultado, tivemos a quebra de vínculo de pacientes com suas famílias, perda de autonomia, pouca ou nenhuma efetividade terapêutica e a consolidação do estigma da figura de pessoas com transtorno mental. A lógica presente nos hospitais psiquiátricos era a mesma para a saúde como um todo, ou seja, centrar-se no tratamento de sintomas, referenciar-se pelo equipamento hospital e ter os equipamentos voltados aos mais pobres administrados por instituições religiosas. Um exemplo triste deste cenário foi o Hospital Colônia de Barbacena, conhecido como o Holocausto Brasileiro. Muito se lutou para mudar este cenário, entretanto hoje observamos retrocessos e dificuldades que comprometem os avanços conquistados.

Aproveitando o clima de contestação com o regime militar no Brasil à época, médicos sanitaristas e movimentos sociais comprometidos com a criação de um novo modelo que superasse o falido INAMPS iniciaram debates e lutas que se consolidaram na VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, a qual foi marcada pela proposta de um sistema único e descentralizado de saúde. Em 1988, com a nova constituição, foi estabelecido que a saúde no Brasil fosse um direito garantido pelo Estado a todos os cidadãos, sendo universal, equânime e integral. Acompanhando essa mudança de paradigma, a saúde mental também foi reestruturada para atender aos novos pressupostos do sistema e garantir atendimento contrário às antigas práticas asilares. Apesar das bases constitucionais, a Lei 10.216, denominada Lei da Reforma Psiquiátrica, foi promulgada apenas em 2001, evidenciando que, dentro da saúde, há certo atraso na incorporação de costumes e práticas em relação à saúde mental. Com a referida lei, foi instituída a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), que visa ofertar atendimento integral ao paciente em sofrimento/ dificuldades psicossociais. O principal equipamento dentro da RAPS é o CAPS, que se propõe a acompanhar casos de média e alta complexidade, como pacientes com Esquizofrenia, transtornos depressivos com ideações e tentativas de suicídio, Transtorno de Personalidade Borderline, etc., a fim de evitar internações e favorecer a inserção do indivíduo na comunidade.

Desde 2006 a lógica de repasse dos recursos à saúde mental se inverteu, e o financiamento de equipamentos comunitários, que não se pautam pela institucionalização, passou a receber a maior parte da verba. Porém, ainda há graves empecilhos para o desenvolvimento da atenção em saúde mental no Brasil. O principal é o subfinanciamento da área, que acompanha o subfinanciamento do sistema de saúde como um todo. Em 2017, foi aprovada a Emenda Constitucional 95, que instituiu o novo regime fiscal brasileiro, determinando que os gastos públicos estejam limitados ao valor dos gastos do ano anterior, corrigido pela inflação. Na prática isso significa menos investimentos para atendimento às demandas populacionais, como melhorias na saúde, por exemplo. Com a grave crise político-econômica que o país enfrenta, resultando, hoje, em taxa de desemprego de 14%, a classe média e média baixa deixou de arcar com planos de saúde privados e passaram a depender do SUS, aumentando a demanda ao sistema. Para além dos problemas de financiamento, há também a falta de políticas de estado que garantam que o acesso ao atendimento em saúde mental ocorra. Segundo a OPAS (Organização Pan-Americana de Saúde), o Brasil apresenta a maior taxa de incapacidade por ansiedade e depressão do continente americano, com 9,3% e 7,5%, respectivamente. E para lidar com esse e outros problemas, em 2019, o orçamento para a área foi de 1,5% do orçamento da saúde, ou seja, R$ 1,6 bi. Este valor está muito abaixo dos 3% a 5% recomendados pela OMS a países em desenvolvimento.

Se formos pensar em Transtornos Mentais Comuns (TMC), são nos grandes centros urbanos que se concentram a maior parcela dos diagnósticos, justamente por apresentarem ambientes estressantes em demasia, como poluição sonora, distância casa-trabalho, maior desigualdade social, de gênero e racial. Em países pobres e em desenvolvimento, observa-se a prevalência de TMC em 30% da população. Segundo a pesquisa São Paulo Megacity Mental Health Survey, a cidade de São Paulo possui 29% de pessoas com algum sintoma ou conjunto de sintomas que apontam para TMC, corroborando esse dado mundial. Algo semelhante é observado no Boletim ISA 2015 da Prefeitura Municipal de São Paulo. Tal instrumento aponta que os Transtornos Mentais Comuns possuem maior prevalência entre mulheres. Destas, a faixa etária prevalente vai de 40 a 49 anos e com grau de instrução fundamental, o que evidencia a alta correlação entre o diagnóstico e desigualdades. É pacífico que a forma mais eficiente para se tratar transtornos dessa natureza, com menor grau de complexidade, perpassa pelo atendimento e acompanhamento pela atenção primária, que deve concentrar maior resolutividade desses casos.

Como forma de descentralizar os atendimentos para transtornos de média e baixa complexidade, os CAPS passaram a encaminhar casos desta natureza às Unidades Básicas de Saúde, o que acarretou necessidade de equipe mínima e qualificada para esse tipo de atendimento. Essa demanda só é atendida através de investimento na atenção primária, e é exatamente a estratégia para seu financiamento que, junto a outros fatores, nos põe em alerta sobre o cenário dos cuidados em saúde mental no Brasil atualmente. Em 2019 o Ministério da Saúde mudou sua política de financiamento da atenção primária, deixando de utilizar como base o PAB (Piso da Atenção Básica) para pautar a transferência de recursos aos municípios no cálculo do número de usuários cadastrados por equipe de saúde e na avaliação de desempenho das unidades. Na prática, isso coloca em xeque a universalidade do SUS e cria incertezas a respeito dos recursos que o município irá dispor, dificultando o planejamento de ações regionalizadas. Coloca em xeque a universalização por levar em consideração apenas a população cadastrada, não a em potencial. Algo similar ocorreu na cidade de São Paulo à época do PAS, sistema de saúde paralelo ao SUS, que entrou em colapso no início dos anos 2000. Outro ponto a se destacar que evidencia a falta de compromisso com as práticas garantidoras da dignidade e respeito aos direitos humanos por parte do atual governo foi a sinalização para, no início de 2021, revogar mais de 100 decretos e portarias que regulamentam políticas e serviços na RAPS. Com tal medida a rede de atenção psicossocial seria desestruturada, comprometendo programas como o Consultório de Rua, Residências Terapêuticas e o De Volta pra Casa.

Há de se pensar seriamente em como iremos enfrentar esse cenário, dado que os efeitos da pandemia, para além dos econômicos (ou derivados deles), apontam para um quadro de saúde mental geral extremamente grave, e com uma conjuntura financeira, política e de gestão nada favorável. Espera-se que haja mobilidade política para responder a esse cenário. Dada a falta de compromisso já demonstrada pelos atores do executivo, cabe à opinião pública levantar este debate e pressionar para que o poder público (legislativo e judiciário, principalmente) também o tome na medida de sua importância. Não há possibilidade civilizatória caso se abra espaço para a negligência absoluta aos que sofrem. Que nossas dores não nos impeçam de lutar. Dias melhores virão.

Por: André Teixeira.