Brasil: a construção do futuro (antes que seja tarde)

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But it’s so hard
It’s really hard
Sometimes I feel like going down

John Lennon (1971)

Por Ricardo Carlos Gaspar – Desde a década de 1980, o Brasil patina na estagnação. Alguns surtos de crescimento não lograram reverter a tendência geral. Na verdade, ficar parado é andar para trás. Pior ainda quando nesse período o mundo passou por grandes transformações. Época marcada, sobretudo, pelo avanço das ciências, guindadas à condição de espinha dorsal das mudanças em curso e eixo da chamada economia do conhecimento.

Pois, nessas mesmas décadas, o Brasil não apenas se viu presa de políticas de equilíbrio macroeconômico de curto prazo, centradas em premissas de austeridade fiscal e diminuição do tamanho e da importância do Estado. O mais grave é tais políticas e ações se prenderem a concepções que, de forma patente, revelaram-se danosas e em flagrante oposição aos objetivos de desenvolvimento econômico, social, científico e cultural do país.

Resultado disso é que, nesses mais de quarenta anos, nosso desempenho foi pífio, não somente em relação a outras potências emergentes (em especial no leste da Ásia), mas sobretudo em se tratando do potencial e das necessidades da nação.

Ao longo de todo o período considerado, não produzimos planos ou projetos dignos de nota. Nossas classes empresariais assistem impotentes ao declínio da indústria, incapazes de traduzir seus próprios interesses em uma agenda autônoma e agregadora. Inexiste, por parte de governos, partidos, instituições e universidades, um esforço consistente de pensar a nação na economia-mundo capitalista contemporânea e formular cenários de médio e longo prazo, bem como definir caminhos para alcançá-los – a rigor, tarefa precípua do Estado na contemporaneidade. Por sua vez, as campanhas eleitorais são marcadas, via de regra, pela indigência intelectual e programática.

Pode-se contra-argumentar que o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, no segundo governo Luiz Inácio Lula da Silva, consubstanciou uma iniciativa louvável de retomar projetos abandonados e canalizar esforços para investir em infraestrutura. Aliás, uma experiência solitária nessas quatro décadas. Porém, careceu de envergadura programática mais consistente e, depois de um início promissor, se perdeu a partir da crise de 2014, minguando até desaparecer.

Por seu turno, enquanto existiram, os ministérios de planejamento do governo federal perderam seu escopo e pouco mais fizeram do que cumprir preceitos constitucionais de elaborar planos plurianuais formais sem maiores debates e de administrar a execução orçamentária. Já as instâncias de “Assuntos Estratégicos” nos governos petistas careceram de efetividade e apoio político.

Depois de 2015, o quadro se deteriorou de vez, até chegar à situação atual. Com a crise, o que era ruim piorou, e a agenda governamental se resume à desmontagem do arcabouço de gestão estatal e à dilapidação do patrimônio nacional. Em nome de quê? Visando chegar aonde?

No presente, quando se aproximam as eleições de 2022 (sob risco), existem dois projetos de transformação da realidade nacional, elaborados e divulgados no passado recente, embora ainda escassamente apropriados no debate público: um deles, o Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil (Fundação Perseu Abramo, 2020), do Partido dos Trabalhadores – PT, tem méritos enquanto tentativa de sistematizar medidas abrangentes de correção de rumos. Contudo, o Plano carece de uma – sumária que fosse – abordagem crítica dos 13 anos de governo do partido, retoma distinções entre política econômica e política social como esferas a parte, aposta numa ótica distributivista frágil do ponto de vista estrutural, não quantifica custos e origem dos recursos envolvidos, além de revelar problemática capacidade de articulação com setores-chave da economia, como o agronegócio ambientalmente responsável. Em suma, sob o aspecto estritamente político, o plano do PT não identifica claramente os eixos básicos de ação do governo e seus mecanismos de aglutinação, enfraquecendo seu potencial de mobilizar e forjar consensos.

A outra proposta está contida no livro de Ciro Gomes, Projeto Nacional: o Dever da Esperança (Editora Leya, 2020). Aqui, o autor, membro do Partido Democrático Trabalhista – PDT, evita as armadilhas de abrir excessivamente o leque de medidas preconizadas. centrando-se em eixos estruturantes e identificando meios e fins alcançáveis. Seria de se esperar maior clareza na identificação da fonte de financiamento dos gastos previstos e uma leitura mais profunda da realidade global. Em termos de consistência programática e capacidade de articulação política, revela-se mais assertivo que o documento do PT, costurando seus enunciados na base de uma avaliação da experiência histórica brasileira e dos descaminhos recentes da esquerda, no Brasil e no mundo. Porém, sua efetividade depende da viabilidade eleitoral do candidato proponente, o que ainda é uma incógnita.

Do exposto até aqui, fica registrado que, nas últimas décadas, o balanço do pensamento crítico e estratégico nacional sobre caminhos possíveis da mudança estrutural e do desenvolvimento econômico e social é bastante insuficiente, incapaz de dominar corações e mentes. E essa é uma faceta importante da nossa pobreza política e intelectual. Pois se trata de esforços de prazo longo, cuja institucionalidade tem que ser cuidadosamente construída e envolve o comprometimento dos agentes públicos e privados do país com a educação continuada, a saúde pública, a indústria, a sustentabilidade ambiental, o resgate social, numa perspectiva múltipla e combinada. Um velho líder já afirmou, alhures, que sem teoria revolucionária não há prática revolucionária consequente. As implicações do descaso com a construção programática estratégica são, entre outras, o atraso e a perda de horizonte no mundo competitivo no qual vivemos – qual o papel de nosso país, qual nosso projeto de nação, o que negociar com a China, com os EUA, como liderar, com generosidade e legitimidade, um projeto de poder que inclua nossos laços históricos com África e América Latina?

Já passou muito da hora para que fortes investimentos sejam empreendidos nessa direção. Tarefa gigantesca, mas não menos urgente, na qual cada oportunidade desperdiçada aumenta a complexidade política da empreitada. Desenvolvimento, acima de tudo, requer a formação de capacidades produtivas e tecnológicas nacionais. Trata-se de um processo eminentemente coletivo, que implica planejamento, vontade política e mobilização de inteligências. Pressupõe um Estado com poder de comando e coordenação de expectativas. De igual modo, um Estado apto a escolher e aplicar medidas de apoio a setores industriais e de serviços intensivos em conhecimento, de reconhecido potencial competitivo. Implica, enfim, a ênfase na produção, no trabalho e na tecnologia, e não apenas no consumo, como tem sido a ótica predominante da concepção neoliberal, ainda em voga no Brasil. Em suma, o país que emergir das cinzas bolsonaristas requer visão, plano, inteligência, lucidez. Não pode haver vacilação possível ante a gravidade do momento e das tarefas a cumprir. O novo governo, em 2023 – seja qual for o resultado das urnas no campo da oposição ao descalabro vigente – terá, como dever histórico, decisivo para o futuro de nosso povo, a missão de adotar estratégias capazes de retomar nosso destino, com democracia, inserção internacional qualificada e compromisso com o desenvolvimento nacional.

Por: Ricardo Carlos Gaspar.
Professor do Departamento de Economia da PUC-SP e Pesquisador do Observatório das Metrópoles–Núcleo SP. E-mail: [email protected]