Arte Degenerada: a acusação sintomática da degeneração na política

Arte Degenerada a acusacao sintomatica da degeneracao na politica
Botão Siga o Disparada no Google News

Por Rodrigo Ornelas

O caso

Uma exposição de arte foi suspensa na segunda-feira da semana passada, com menos de uma semana de aberta e, enfim, desmontada 24h depois. A exposição “O Grito!” estava na Caixa Cultural em Brasília e deveria permanecer aberta por dois meses. Nela havia algumas peças de Marília Scarabello, uma artista contemporânea que costuma abordar o Brasil em seus trabalhos e foi justamente uma obra de Marília o vetor da confusão absurda que é fechar uma exposição contemplada por uma seleção pública (Programa de Ocupação dos espaços Caixa Cultural 2023/2024), gostemos ou não das obras lá expostas.

As obras em questão são da “Coleção Bandeira”: “Bandeira [Fragmento #2]” (2016-em processo) e ”Bandeira [Fragmento #3]” (2023), que expõem uma coleção enorme de releituras da bandeira do Brasil feitas pelo público, nas ruas, na internet (eu mesmo mando fotos para ela quando encontro uma bandeira por aí). É um trabalho de pesquisa, colaborativo e em permanente atualização. A coleção tem um perfil no Instagram, inclusive.

Além de Marília, compõem ainda a mostra, com curadoria de Sylvia Werneck, os artistas Élcio Miazaki, Evandro Prado, Gina Dinucci, Moara Tupinambá, Paul Setúbal e Yara Dewachter.

A obra

Desde sempre, Marília Scarabello tem, entre os seus trabalhos, uma linha de instigação com representações do Brasil através dos símbolos (do mapa à bandeira, das palavras às cores). O símbolo nacional representa o país e é muito comum que, por isso mesmo, o público subverta-os das mais diversas formas para tratar do país, ou simplesmente o usem por aí pelo mesmo motivo. Noutro momento, por exemplo, Marília se mobilizou com um capacho na entrada de um restaurante que estampava a bandeira nacional: o dono do estabelecimento o colocou provavelmente como símbolo patriótico, mas o fato era que se tratava de um tapete, onde todos pisavam e limpavam os sapatos antes de entrar e que, por fim, estava bem sujo. Marília pediu o capacho como estava e colocou num mastro, em outra exposição (obra “Capacho”, de 2020).

Na coleção “Bandeira” estão releituras da bandeira nacional às vezes com humor, às vezes escatológicas, às vezes contra a esquerda, às vezes contra a direita, às vezes celebrando eventos, às vezes repudiando episódios. Mas a política vive dos símbolos e das imagens, de modo que era o caminho natural da exposição criar um desconforto político grande. Não é plausível a premissa de uma arte que não possa fazê-lo. Daí que fossem naturais as manifestações contrárias ou as críticas negativas à exposição. Já a sua suspensão e fechamento são coisas absurdas, perigosas e sintomáticas.

Em nota, a curadora Sylvia Werneck falou sobre a obra: “Há manifestações de opiniões pessoais, comentários irônicos, críticas e até posicionamentos políticos (das mais variadas posições no espectro político). Como são postagens de perfis pessoais, não passaram por qualquer tipo de filtro ou censura. Há imagens mais fortes e mais ingênuas, dizeres mais inocentes e mais despojados, podendo, inclusive, haver palavrões. O lambe-lambe [formato da impressão de algumas bandeiras], portanto, é uma coleção (…) de muitas destas manifestações e representa a variedade de opiniões e crenças que compõem a população do país.” (grifo meu).

A política degenerada

Além das imagens irritarem políticos e personagens mais ideologizados, como de praxe, uma em especial mexeu com os humores de modo mais prático: uma montagem com Arthur Lira (PP-AL), Damares Alves (Republicanos-DF) e Paulo Guedes numa lata de lixo pintada com a bandeira do Brasil. Não havia momento menos oportuno para o governo federal e nem momento mais oportuno para Lira: na atual troca de presidente da Caixa, a promessa antiga de Lula a Lira, e que ainda não havia sido cumprida, era que o novo nome seria alguém ligado ao deputado.
A coletânea de mensagens populares dadas através de “Bandeira” feita por Marília agitou os ânimos do centrão e da direita. A deputada Bia Kicis (PL-DF) chegou a fazer um requerimento na segunda-feira pedindo a convocação do Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para prestar esclarecimento sobre o financiamento da exposição na Comissão de Fiscalização Financeira e Controle, presidida por ela.

É falsa a ideia de crime cometido pela artista por deturpação do símbolo nacional, porque a obra coleta intervenções públicas de outros – a obra é a coleção, não a modificação das bandeiras. É falsa a ideia de que há viés político porque as bandeiras abrangem todos os tipos de opiniões políticas. Mas entender isso não é suficiente, porque a motivação da revolta, essa sim, é enviesada. Usando a artista como “boi de piranha”, o centrão fez uso político da exposição para cobrar a presidência da Caixa.

Em entrevista a Mônica Bergamo (Folha), a artista conta que tem sido “agredida e desqualificada” e mesmo ameaçada “por uma narrativa falsa” sobre o seu trabalho. Convidada para compor a exposição, Marília Scarabello apresenta uma ideia da obra que chega a contrastar com o caso do cancelamento e seu entorno político: “Me interessei por aquelas manifestações, por aquelas vozes falando todas ao mesmo tempo, e que muitas vezes estão em conflito, mas que convivem em um Estado democrático de Direito como é o Brasil. (…) É um retrato do Brasil e de suas múltiplas e diversas manifestações.”

Além de Kicis e outros, também Damares Alves se pronunciou, fazendo a pergunta mais velha da história da arte: “Isto é arte?” O caso é que, aqui, essa pergunta simplesmente não importa: a exposição, aprovada em seleção pública, tem que seguir aberta e a artista convidada para a exposição tem que ser respeitada. Sempre que temos uma obra/exposição de arte censurada é sinal que a nossa saúde política não vai bem.

O fato de a Caixa cancelar uma exposição imediatamente após manifestações de desaprovação por um grupo político e dos salões serem esvaziados 24h depois disso, como se nada houvesse passado por lá, é grave e sintomático, mas também abre um precedente perigoso. Na quarta, enfim, dois dias depois da suspensão da exposição, Lula demitiu a presidente da Caixa, Rita Serrano, e colocou no posto um aliado de Arthur Lira, o economista Carlos Antônio Vieira Fernandes. No dia seguinte as manchetes anunciavam que o filho de Lira é sócio da empresa que negocia publicidade com a Caixa.
A história toda é muito ilustrativa.

Por Rodrigo Ornelas, Doutor em Filosofia, Professor, Pesquisador; coordenador do GT Poética Pragmática (UFBA/CNPq) e membro do Laboratório de Estudos Brasil Profundo (IFBA/CNPq)