A Tecnopolítica da Sputnik V

A Tecnopolítica da Sputnik V
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Por Thaís Gondar – A Índia tinha acabado de autorizar o uso emergencial da Sputnik V e a página da vacina russa no Instagram anunciou um concurso para concorrer a pacotes turísticos de vacinação na Rússia. O post que estampava o estereótipo de um casal indiano, ambos fazendo o sinal de V com as mãos apontadas para a câmera, justificava a lançamento do concurso da viagem como uma ação de combate à pandemia de covid-19.

É impossível saber por onde começar a explicar tamanho absurdo.

A própria ideia de se propor um turismo de vacinas num momento em que a OMS questiona a desigualdade na distribuição entre países pobres e ricos, num momento em que viagens se tornarão cada vez mais onerosas, num momento em que a necessidade por medidas de isolamento social ainda é real em vários países… propor o turismo de vacinas, neste momento da história, é no mínimo imoral!

Mas o conceito de imoralidade é fluido. E em momentos de terror e distopia, a moral vai sendo paulatinamente substituída pela barbárie. Até que se normalize conviver com 3500 mortes por dia e cenas de tortura no sistema de saúde público, transformando a dor humana em simples estatística e show de horror midiático. Eis o cenário perfeito para o surgimento de soluções milagrosas e fanatismo ideológico. E é nesse caldeirão de desinformação, polarização política e total desesperança que a Sputnik V é apresentada ao mundo.

A Sputnik V é a única vacina que possui estratégias de comunicação digital em várias redes sociais e uma equipe de marketing engajada em propagandeá-la mundo afora. As multinacionais farmacêuticas que estão na corrida pelas vacinas não seguem a mesma linha. E há duas grandes razões por trás disso.

A primeira delas é que as farmacêuticas sabem que a vacina é o produto de maior demanda no mercado global neste momento. Este fato sozinho já é o suficiente para que suas ações sejam valorizadas nas bolsas e o lucro esteja garantido. Não há a menor necessidade em gastar recursos com propaganda.

A segunda é uma questão de Compliance. As farmacêuticas sabem que, na maioria dos países que possuem seu mercado de saúde regulado, é proibido fazer propaganda de medicamento sem registro ou autorização do órgão competente do país. E esta seria uma forma muito estúpida de arriscar o valor de uma marca consolidada.

Ou seja, quando as páginas da Sputnik V mostram, na internet do Brasil, pessoas felizes sendo vacinadas em outros lugares do mundo e propõem concursos de vacinação, ela não só é imoral como comete sucessivamente crimes de saúde pública de acordo com a Lei 6.360/76.

É possível denunciar nas plataformas? Não. Pois nem o Twitter, nem o Facebook ou o Instagram disponibilizam a opção de denúncia por crime de saúde pública. E mesmo que houvesse esta opção, a denúncia seria feita para empresas privadas. E elas fariam o que com isso? No máximo, derrubariam as páginas, mas o estrago com a opinião pública já foi feito e a janela para o oportunismo já foi aberta.

O interesse do Fundo Russo com a Sputnik V não é financeiro, mas geopolítico. E isso foi se demonstrando cada vez mais evidente desde que a agência russa concedeu o registro da Sputnik V sem a conclusão dos estudos clínicos de fase 2 ainda em Agosto de 2020. Vale lembrar que a Rospotrebnadzor, a autoridade sanitária russa, não é uma agência de Estado, mas uma organização que se reporta diretamente ao governo. Ou seja, é uma instituição sem qualquer autonomia política.

Passados nove meses, as páginas da Sputnik V comemoraram a autorização de uso emergencial ou registro definitivo em mais de 60 países, apresentaram estudos de eficácia acima de 95% em revistas científicas renomadas e a vacina russa se tornou a materialização do conceito de tecno-política.

O que é Tecno-Política?

O conceito é relativamente novo. Entretanto, desde a década de 70, as barreiras políticas entre os países deixaram de ser puramente físicas e passaram a ser técnicas e burocráticas após o nascimento das primeiras agências reguladoras do mundo. E hoje chegamos a uma nova era de influência tecno-política em que as decisões tomadas por estes órgãos autônomos se confundem com o cenário político e vice-e-versa. A pandemia de covid-19 tornou cristalino como isso acontece entre os Estados e o mercado global de tecnologia médica e farmacêutica.

A lei 6.360/76 é clara. Qualquer instituição interessada em distribuir vacinas no Brasil, seja uma multinacional farmacêutica ou um fundo governamental, precisa ser aprovada nos requisitos sanitários do país. Quem determina quais são estes requisitos é a Anvisa e esta é a regra em vigor. Discutir se os requisitos da Anvisa ultrapassam a ineficiência burocrática e atrasam o desenvolvimento do país é um outro assunto. O importante agora é entender que qualquer vacina (seja Pfizer, Oxford, Moderna ou Sputnik) precisam passar pelo mesmo processo de avaliação técnica antes de ser distribuída no Brasil.

O problema é que este processo de avaliação é totalmente desconhecido pela sociedade. Gestores públicos nunca entenderam. Políticos jamais fizeram questão de aprender. Empresários odeiam burocracia e acham desnecessário proteger a saúde da população. A imprensa confunde os conceitos e contribui para mais desinformação. A própria Anvisa errou rude em não desenvolver um diálogo saudável com a sociedade, mas foi proativa em apresentar o Dr. Gustavo Mendes como porta-voz da agência e suas apresentações nas reuniões da DICOL que são nada didáticas para o público leigo. E quem perde é a população que fica absolutamente confusa diante de tanta esquizofrenia de notícias nas telas.

Mas se partirmos da premissa básica e óbvia de que todos devemos respeitar as leis e as regras estabelecidas, pedir a liberação da Sputnik V (ou pior! a importação em caráter excepcional utilizando dispositivos jurídicos), sem que a avaliação técnica da vacina seja concluída, é colocar a população em gravíssimo risco sanitário. Tomar vacina sem o aval da agência é o equivalente a consultar médico sem diploma. Levam-se anos para formar um profissional médico com aulas práticas, provas discursivas e estudos de caso. Da mesma forma, levam-se anos para que vacinas cumpram todos os protocolos sanitários exigidos pelos fóruns internacionais de regulação. A pandemia de covid-19 reduziu este prazo de 10 anos para 10 meses. Você consultaria um médico formado em curso rápido de EAD?

Por que o processo da Sputnik está demorando mais que o das outras vacinas?

As multinacionais farmacêuticas que estão na corrida pelas vacinas participam da construção dos padrões de qualidade e requisitos sanitários do mercado global desde que as primeiras agências foram criadas. Através do lobby institucionalizado ou pelo uso dos dispositivos de participação e influência popular, o diálogo estabelecido entre ambas as partes moldou as regulações e os padrões sanitários internacionais que surgiram nos últimos 20 anos em nível global e local.

Quando os países perceberam que o custo de regular a indústria aumentava a necessidade de investimentos, os fóruns de harmonização regulatória começaram a se tornar necessários e surgir mundo afora. Países membros passaram a adotar então práticas regulatórias e sanitárias semelhantes para otimizar o comércio global do mercado de tecnologia em saúde.

Este é o caso, por exemplo, do PIC/S – Pharmaceutical Inspection Co-Operation Scheme e do ICH – International Council for harmonization of Technical Requirements for Pharmaceuticals for Human Use. O PIC/S trata-se de uma cooperação internacional no campo de Inspeção de Boas Práticas de Fabricação entre autoridades reguladoras e a indústria farmacêutica. Seu principal objetivo é harmonizar as práticas de inspeção dos fabricantes em diversos países e compartilhar os resultados entre os membros por intermédio de uma certificação única aceita por várias agências. Já o ICH é um conselho internacional para a harmonização dos requisitos de segurança, qualidade e eficácia de produtos farmacêuticos para uso humano.

Brasil, Europa, EUA, Japão e Canadá são países membros do PIC/S e do ICH. Isso significa que seguem mais ou menos os mesmos requisitos sanitários e de padrões de qualidade em seus mercados farmacêuticos. A Rússia não é membro de nenhum deles (apenas ouvinte no ICH).

Esta introdução explica porque Brasil e Rússia possuem requisitos regulatórios para aprovação de vacinas completamente distintos. E é aqui que se encontra a razão de tamanha demora no pedido de uso emergencial da Sputnik V.

De maneira bastante simplificada, a aprovação do uso emergencial de uma vacina no Brasil exige três grandes pacotes de documentação. O primeiro pacote do dossiê diz respeito aos documentos comprobatórios relacionados ao produto. É onde são apresentados os resultados dos ensaios clínicos, dados de eficácia, imunogenicidade, esterilidade, etc. O segundo pacote refere-se à inspeção de boas práticas de todas as plantas envolvidas no processo da produção farmacêutica. E a terceira parte do dossiê é o plano de monitoramento da vacina e as ações de farmacovigilância após sua aplicação na população.

As farmacêuticas possuem hoje quase todos os requisitos regulatórios do mundo mapeados e equipes de gestão regulatória gigantescas que otimizam a introdução de qualquer produto em qualquer mercado. Já a operação do Fundo Russo, seja lá que conformação ela tenha, está muito atrás das multinacionais em termos de entendimento, participação e conformidade com os requisitos regulatórios determinados pelos principais fóruns globais. E é por isso que o laboratório União Química teve seu primeiro pedido de uso emergencial devolvido pela agência e, após a solicitação do segundo pedido, segue ainda com pendências em 87% do dossiê*.

A mesma dificuldade tem sido enfrentada pela Rússia para aprovar o uso emergencial na União Europeia, por exemplo. Por falta de conformidade regulatória, a vacina russa é amplamente criticada pelos especialistas. Entretanto, governos e opinião pública acabam por politizar a questão técnica da qual não entendem absolutamente nada. Entra em cena a tecno-política. E inflamada pelos algoritmos das redes sociais. Infelizmente, não é diferente no Brasil.

A eficácia da Sputnik V já foi comprovada e mais de 60 países já estão aplicando o imunizante. Há interferência política do governo Bolsonaro na Anvisa?

É verdade que ensaios clínicos publicados em revistas científicas de renome internacional têm demonstrado que a Sputnik V é uma vacina eficaz. Mas a comprovação da eficácia por si só não é suficiente para atender ao padrão regulatório brasileiro. A eficácia é apenas um dentre vários outros requisitos sanitários que a União Química tem apresentado dificuldade em cumprir.

Um exemplo disso foi a demora em disponibilizar para a agência a relação de todas as plantas envolvidas nas etapas de fabricação dos lotes que virão para o Brasil. Foram muitas reuniões entre a União Química e a Anvisa até que os dados se tornassem transparentes. E já sabemos que transparência não é o forte de governos populistas como os de Putin e Bolsonaro.

Esta semana, servidores da Anvisa estão realizando as inspeções sanitárias em duas plantas fabricantes do IFA na Rússia. Este é um marco importantíssimo na discussão sobre a tecno-política da Sputnik V. Isso porque os dados coletados da auditoria da Anvisa poderão ser compartilhados com outras agências reguladoras por intermédio do PIC/S. Toda a operação de produção do IFA da Sputnik V se tornará transparente a todos os países membros. O resultado que será apresentado das inspeções poderá se tornar um ponto de virada na narrativa da Sputnik V como arma de influência geopolítica. OMS e EMA inspecionarão as fábricas russas em maio de 2021.

Os 60 países que já aprovaram o uso emergencial ou o registro definitivo da Sputnik V são, em sua grande maioria, países não regulados ou que possuem regulações sanitárias muito incipientes e não seguem as recomendações dos fóruns globais. Por isso foi tão fácil a Rússia introduzir sua vacina em pequenos países do Leste Europeu e da América Latina em tão pouco tempo. México e Argentina, apesar de serem membros do PIC/S, não possuem em sua regulação local a exigência da inspeção em boas práticas de fabricação como o Brasil. É por isso que não faz o menor sentido solicitar que a Anvisa utilize os documentos da ANMAT ou da COFEPRIS para liberar o pedido de importação excepcional da Sputnik V pelos estados. Além disso, é preciso investigar quais foram as circunstâncias de afrouxamento regulatório provocado pela pandemia nestes dois países.

Aqui no Brasil, por exemplo, a Anvisa acabou flexibilizando os requisitos do Guia 42/2020 ao permitir a realização dos estudos clínicos de fase 3 fora do Brasil. Esta flexibilização foi reflexo da pressão do Congresso Nacional em legislar sobre temas da agência através de MPs para facilitar a introdução da Sputnik V no Brasil. Quem não se lembra das tentativas das MPs das Vacinas em transformar a Anvisa numa mera Rospotrebnadzor? A manobra foi amplamente comentada pela imprensa como um lobby do Centrão. Mais uma vez ela: a tecno-política nos holofotes.

Até agora, a Rússia anunciou parceria com mais de 20 fabricantes de vacinas pelo mundo. É praticamente impossível manter os padrões de controle de qualidade exigidos pelo PIC/S ou ICH com esse nível de terceirização. Por conta disso, é bem provável que o relatório de inspeção da Anvisa aponte várias não-conformidades nas operações russas. E obviamente, isso atrasará ainda mais a discussão tecno-política por trás do uso emergencial da Sputnik V e sua aprovação no Brasil e no mundo.

A influência política existe e sempre existirá. Seja com o diretor-presidente sentado na cadeira da mesa de reunião do Planalto Central, seja com o governador do Maranhão judicializando todo o processo de importação.

A resposta finaliza com uma reflexão: por que então as multinacionais não seguiram a mesma estratégia de introdução da vacina começando pelos países menores e não regulados como fez a Rússia?

Mas PRA QUE TANTA BUROCRACIA?

Mesmo com a participação massiva da indústria farmacêutica na definição dos requisitos e padrões regulatórios globais, ambos o setor regulado e o setor regulador discutem juntamente com cientistas quais os critérios mais adequados a ser seguidos por novas tecnologias farmacêuticas.

E é graças à existência desta burocracia técnica é que se pode confiar que as vacinas sejam realmente seguras e eficazes, pois o processo deve ser harmonizado globalmente e transparente localmente. A robustez dos requisitos regulatórios torna essas operações extremamente caras e complexas, o que dificulta o surgimento de oportunistas fabricantes de vacina em fundos de quintal. A saúde da população agradece.

Oxalá a Sputnik V consiga passar por toda sabatina regulatória e comprove-se mais uma opção para a população brasileira. Estudos têm apontado que ela é uma vacina capaz de fazer nosso sistema imunológico produzir anticorpos contra o Sars-Cov 2. O que ela precisa agora é comprovar tudo isso por meio de documentos transparentes à população global. Esta é a função das agências reguladoras e dos fóruns globais de regulação. Anvisa, OMS, EMA não estão perseguindo politicamente a Rússia. O que essas agências querem é o que também queremos: ver os dados científicos das vacinas. Mas a Rússia nunca curtiu muito essa exposição, não é mesmo? Enquanto este processo de avaliação da Sputnik V não é concluído com um parecer positivo da Anvisa, todo cuidado é pouco pois o tiro pode sair pela culatra (mais uma vez, pois Brasil!).

Os 60 países que já podem aplicar a Sputnik V não exigem ações de monitoramento ou farmacovigilância em seus protocolos de registro ou uso emergencial. Isso significa que estes países não estão monitorando o aparecimento dos efeitos adversos provocados pela vacina. Além disso, os dados sobre o tempo que perdura a proteção conferida pela Sputnik V ainda são inconclusivos.

Outra alegação muito recorrente da página da Sputnik V é que ela seja uma opção intercambiável entre as demais vacinas. Isto é uma afirmação completamente descabida e sem a menor comprovação científica até o momento. O que prova, mais uma vez, que a ação de marketing digital do governo russo é completamente criminosa do ponto de vista de segurança de saúde pública.

A Sputnik V pode se tornar um problema geopolítico maior do que se imagina. Caso a vacina não demonstre a conformidade regulatória com os requisitos dos fóruns globais, muitos países poderão não aceitá-la em futuros passaportes de vacina, por exemplo. Mas esta seria apenas mais um inconveniente na nossa vida prática. O maior problema poderá ser o descontrole total da pandemia em países economicamente mais frágeis. E isto sim seria mais um atentado contra a vida humana. Não há palavras pra medir tamanha imoralidade.

Quem pagará o preço?

E aos grandes apoiadores da narrativa antiga e requentada da guerra fria, iniciada pelo próprio governo russo através de suas redes sociais, sugerimos que estudem História e procurem fontes mais confiáveis para se informar neste mundo tão caótico e dominado por oportunistas disfarçados de Messias. Boa sorte!

(*) dado coletado do Painel de Análise da Anvisa em 22/04/2021.

Por Thaís Gondar