A carne brasileira vale menos que a chinesa. Saiba porque

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Por Daniel S. Kosinski – Agora que as exportações da carne bovina produzida no Brasil para a China foram bloqueadas por iniciativa das autoridades chinesas, o preço do produto começou a cair, ainda que lentamente, nos supermercados por aqui.

À primeira vista, não parece difícil explicar o fenômeno. Tendo perdido o seu principal cliente no exterior, que paga em dólares (cerca de metade da carne bovina exportada), os produtores decidiram escoar seus excedentes não comercializados para o consumo interno, cujos consumidores pagam em reais.

Trocando em miúdos, agora que os chineses – aproveitando-se de um pretexto sanitário, mas na realidade por motivações políticas – deixaram de comprar os seus produtos, os produtores brasileiros decidiram, afinal, “privilegiar” os mercados locais, compostos pelos seus compatriotas.

Nos jornais de maior circulação e nas grandes redes de televisão, os economistas e porta-vozes de sempre se apressaram para apresentar “explicações” para o fato. “É o mercado”, vaticinam, em uníssono. E explicitam a sua “dinâmica”: se o preço da carne lá fora, em dólares, se mostra mais vantajoso para os produtores, é “natural”, “inevitável”, que eles favoreçam as exportações em detrimento do abastecimento interno.

Aproveitando a oportunidade, até mesmo o insuspeito Luciano Huck decidiu contribuir para essa generosa onda nacional de esclarecimento, gravando um vídeo no qual expõe a sua versão do fenômeno. Alegando ter “ouvido economistas”, diz o comunicador:

“Como um país que é um dos maiores produtores de carne do planeta tem um preço tão caro? Uma das primeiras respostas é a alta do dólar. O mercado brasileiro é diretamente influenciado pelo câmbio. Se o real desvaloriza muito, começa a valer a pena para o produtor de carne vender lá fora, em dólar”.

Adiante, diz:

“Não é à toa que estamos batendo recordes de exportação ao mesmo tempo em que a comida está cada vez mais cara no mercado. Se a carne aumenta muito, as pessoas compram mais frango. Aí, o frango começa a faltar, e o preço começa a subir. E por aí vai”.

Já no fim do seu didático vídeo, Huck declara que “política é o preço da carne no supermercado” e que “o preço da carne é só mais um exemplo de que, enquanto a gente tiver medo de falar sobre essas coisas, uma hora a conta vem. E fica cara”.

Façamos, então, o que pede o apresentador global: vamos discutir a política por trás dos preços da carne.

De saída, não podemos dizer que Huck mentiu. Visivelmente, ele ouviu os economistas e, como a maior parte deles, atribuiu o fenômeno a essa irresistível “dinâmica” do “mercado”. Nós, todavia, não temos qualquer pretensão de seguir esse mesmo caminho. Pois assim como eles, o que Huck fez foi envernizar, com suposta cientificidade, a carestia e a desgraça dos brasileiros. Em contraposição a isso, precisamos perguntar: afinal, onde encontramos o texto dessa pretensa lei de validade universal segundo a qual a valorização do dólar frente ao real justifica que milhões e milhões de brasileiros enfrentem privações alimentares em favor de que um punhado de produtores de carne lucrem em moeda forte? Onde encontramos a demonstração desse princípio supostamente irrefutável segundo o qual aos estrangeiros deve caber a preferência na apropriação dos melhores frutos do trabalho social realizado pelos brasileiros, com o seu trabalho e tendo como base os recursos naturais disponíveis no território por eles ocupado?

Com efeito, e a não ser que se preste deferência a essa mistificação chamada de “sistema de mercado”, cremos que ninguém saiba responder essas perguntas. Em rigor, as respostas para elas não estão no discurso fraudulento desses economistas. Como disse Huck, elas estão na política, embora não numa do gosto liberal do apresentador global. O problema do Brasil atual é simples: ele padece, criticamente, de governo nos mais diversos níveis. Depois de 30 anos de inclemente ofensiva neoliberal, esse Brasil, devastado em diversas dimensões, “governado” pelo individualismo e pelo “mercadismo”, não mais possui sequer políticas de manutenção de estoques públicos e regulação de preços dos alimentos básicos. Tampouco possui qualquer governo disposto a impor quotas de abastecimento do consumo interno antes que os excedentes sejam exportados. Nesse antigo projeto de país reduzido por elites dirigentes perversas a um caça-níquel, os principais bens básicos de subsistência e de uma vida minimamente moderna – alimentos, combustíveis, energia – já foram explícita ou implicitamente dolarizados e seus produtores e proprietários liberados para agir como bem entenderem, sejam quais forem as consequências, doa a quem doer, passe fome quem “tiver” que passar.

Enquanto isso, os chineses, usuais compradores de grande parte dos principais produtos agropecuários de exportação brasileiros, mantém, de longe, os maiores estoques públicos globais de alimentos. Em alguns produtos, sozinhos, são donos de mais da metade das reservas mundiais, fato demonstrativo do comprometimento das suas autoridades com a segurança alimentar da sua população. Assim, é provável que possam dispensar a carne brasileira por um tempo razoável sem sofrerem com desabastecimento e variações extremas de preços, até que encontrem outras fontes de suprimento ou decidam retomar as compras aqui.

Em suma, nesse Brasil “antenado” com a globalização neoliberal que, por livre e espontânea vontade, se precariza e precariza a vida da sua população a esse ponto, resta torcermos para que nossos pobres e famintos consigam aproveitar essa “janela de oportunidade” para saborear alguns pedaços dessa carne. No Brasil dos neoliberais, eis o que cabe lhes cabe: os restos, as sobras, os ossos. Nesse grande mercado globalizado das carnes, sem dúvidas, a dos brasileiros está muito, muito mais barata que a dos chineses.

Por: Daniel S. Kosinski.
Doutor em Economia Política Internacional (IE-UFRJ) e membro do Instituto da Brasilidade.