A barbárie será televisionada

Por Juliana Faleiros - Há mais de vinte anos a Rede Globo, emissora de televisão líder do Brasil, vem exibindo anualmente o programa Big Brother Brasil (BBB), no qual pessoas se candidatam para fazer parte do jogo e concorrerem a determinada quantia.
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Por Juliana Faleiros – Há mais de vinte anos a Rede Globo, emissora de televisão líder¹ do Brasil, vem exibindo anualmente o programa Big Brother Brasil (BBB)², no qual pessoas se candidatam para fazer parte do jogo e concorrerem a determinada quantia³.

Dizem que é um “reality show”, um jogo de exposição da realidade, na qual os “jogadores” são verdadeiramente quem são, sem interferências da emissora. No entanto, além da edição para transmissão diária no fim da noite, que reflete o direcionamento desejado pela empresa, alguns episódios captados em “pay-per-view” ao longo destes anos mostram a ingerência dos condutores do “show”. Seria mesmo um jogo ou mais um roteiro no estilo telenovela, um dos produtos4 mais rentáveis da empresa de comunicação? Como lembra João Leonardo Medeiros, a pretensa simulação da realidade “é dirigida, tem cenário, roteiro, figurino e elementos comuns a um programa televisivo.”5

A edição de 2021 do Big Brother Brasil (BBB) foi organizada numericamente igualitária nos “quesitos” raça e gênero, com integrantes conhecidos e desconhecidos do grande público. Na semana de 22 de fevereiro, alguns recordes interessantes foram alcançados: (i) a rejeição mais expressiva, pois a eliminada (por que não dizer cancelada?) Karol Conká alcançou 99,17% dos votos; (ii) dada a agitação nos dias anteriores por sua presença no “paredão”6, a empresa de telecomunicação esgotou todos os espaços nos intervalos com anunciantes, tanto nacional quanto regionalmente; e (iii) esse cenário, alimentado pelas redes sociais, levou à maior audiência em dez anos7.

A rapper, na visita ao programa “Mais Você”8, talvez na tentativa de reconstruir-se devido a perda de contratos e de seguidores, se autonomeou Carminha, a personagem de Adriana Esteves na novela “Avenida Brasil”, e Nazaré, a personagem de Renata Sorrah em “A senhora do destino”. Tanto uma como outra são personagens vilãs memoráveis da teledramaturgia da televisão brasileira que, talvez, tenham superado a lendária Odete Roitman, personagem de Beatriz Segall em “Vale Tudo”. São vilãs que beiram a patologia, mas que conquistaram o público e mantêm lugar cativo no imaginário popular. O que merece investigação, mas extrapola o que aqui se pretende mostrar, são os motivos pelos quais Felix, Mateus Solano, em “Amor à vida” e Renato Mendes, Fábio Assunção em “Celebridade”, personagens tão ou mais perversos quanto as demais não são lembrados nem vivem na “boca do povo”. Uma possibilidade pode residir no sexismo impregnado na sociedade brasileira.

Sobre BBB21, tem acontecido debates de muitos matizes – alguns mais, outros menos sólidos – sobre a eliminada Karol Conká tanto por seu comportamento agressivo e predatório quanto pelos temas que envolvem a questão racial no Brasil. O que se pretende problematizar aqui, de maneira breve, é o aspecto da exploração da imagem, do ódio e da suposta liberdade dos seres humanos para decidirem serem esmagados em rede nacional.

Enquanto pessoas são diretamente afetadas pelo programa – Lucas, um dos participantes, desistiu após intensa ofensiva de outros jogadores, além do filho de Karol Conká sofrer ameaças e ofensas nas redes – as empresas batem recorde de venda e de audiência. A troca da dignidade pelo lucro; a da saúde mental pela quebra de recorde.

O modo de produção capitalista se sustenta pela violência, pela desigualdade, pela hierarquização e pela acumulação. Alguém sempre ganha com a exploração de alguma coisa (meio ambiente), pessoa (trabalhador/a) ou demanda social (feminismo e luta antirracista). Enquanto se digladiam para saber quem é mais militante, quem domina mais as questões atinentes ao sexismo e ao racismo na sociedade brasileira, a caravana da exploração passa. A hierarquização de opressões é um falso dilema que serve à acumulação e, por isso, “a verdadeira crítica deve ser dirigida para os determinantes da época”9, numa perspectiva de totalidade.

No caso do BBB o produto à venda é o desentendimento entre as pessoas participantes, a intriga para formação de grupos e as discussões homéricas com violências e agressões fortíssimas. A única coisa vetada é a violência física, o resto pode. Pode? Apesar do discurso marcadamente cristão da sociedade brasileira, pode sim. Não só pode como deve porque quanto mais agressão, confusão e desavença mais interesse provoca-se nos anunciantes. O BBB 21 tem sido nominado de “big dos bigs”, pois a demanda tem superado a oferta: “cerca de 30 empresas estão, neste momento [início do mês de fevereiro], na fila para tentar ligar sua marca ao BBB.”10

A barbárie vem sendo televisionada11, mas a cada edição os requintes de crueldade dissimulada de liberdade se agudizam e essa exacerbação da violência tem um efeito profundamente perverso: dessensibiliza ainda mais os seres humanos, tornando-os estranhos de si mesmos.

Enquanto contamos mortos em razão direta da pandemia, o BBB 21, com todo o ódio que escorre, é momento de deleite e entretenimento, inclusive com fogos de artifícios ao final de cada paredão. Enquanto alcançamos um ano de necessidade de isolamento social, um pequeno grupo se confina para vender sua atuação e garantir a acumulação para um seletíssimo grupo de grandes empresas. Dizem expor a realidade, mas, de fato, promove-se o alheamento dela.

Por: Juliana Leme Faleiros.
Doutoranda e mestra em Direito Político e Econômico (Mackenzie). Especialista em Direito Constitucional (ESDC). Advogada.

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Notas:

¹ De acordo com Intervozes e Reporteros Sin Fronteras a Rede Globo, além de líder, está em todos os nichos do mercado: streaming, rádios, canais abertos e fechados, periódicos, canal de notícias, a maior agência de notícias, Agência O Globo (AOG) e, ainda, atua no mercado cinematográfico, fonográfico e editorial. INTERVOZES. REPORTEROS SIN FRONTERAS. La hegemonía de la concentración sin límites. 2017. Disponível em: http://brazil.mom-rsf.org/es/hallazgos/concentracion/. Acesso em: 07 mar. 2020. Além disso, é considerada a segunda maior empresa de comunicação do mundo. Disponível aqui. Acesso em 25 fev.2021.

² A primeira edição do Big Brother aconteceu em 1999 na tv holandesa criado e patenteado pela empresa Endemol. Várias empresas de diversos países se interessaram e, no caso do Brasil, A Rede Globo tem uma parceria com Endemol para exibir o programa.

³ Inicialmente era R$ 500 mil. Nesta edição o prêmio é R$ 1,5 milhão.

4 No documentário “Roberto Marinho: o senhor do seu tempo” José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, contando sobre a relação de Roberto Marinho com o regime civil-militar, narra a alegria dele por ter colocado no ar a novela “Roque Santeiro” em 1985, que fora censurada em 1975. Nesse momento, Boni afirma, categoricamente, que telenovela é um produto.

5 MEDEIROS, João Leonardo. Capital, o big brother (ou por que devemos levar a sério os reality shows). In. Margem Esquerda: ensaios marxistas. n. 18. Boitempo Editorial: São Paulo, 2012, p. 122.

6 Chamar de paredão o “local” para o qual os participantes que correm o risco de sair do jogo são colocados é bastante sugestivo, períodos de intenso conflito, como a guerra civil espanhola e o stalinismo, o paredão era o modo de eliminar os adversários, fuzilando-os. Fazer uso de metáforas bélicas revelam o tom do jogo exibido diariamente, por aproximadamente três meses do ano.

7 Disponível aqui. Acesso em: 25 fev.2021.

8 Os participantes, após a eliminação, passam pelo programa “Mais você” e outras atrações e atividades da emissora, conforme as regras estabelecidas no contrato para participação no jogo.

9 MEDEIROS, João Leonardo. Capital, o big brother (ou por que devemos levar a sério os reality shows). In. Margem Esquerda: ensaios marxistas. n. 18. Boitempo Editorial: São Paulo, 2012, p. 139.

10 Disponível aqui. Acesso em: 25 fev.2021.

11 A ênfase aqui é dada ao programa BBB, mas é sabido que a barbárie vem sendo televisionada por tantos outros meios de comunicação como nos programa policialescos que se dizem jornalísticos.