A Culpa (não) é de Brizola: a Violência no Rio de Janeiro

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A Culpa (não) é de Brizola: a Violência no Rio de Janeiro

Por Bernardo Brandão

Fortemente marcado pelo reacionarismo, o imaginário político carioca costuma culpar Brizola pelo aumento da criminalidade na cidade do Rio de Janeiro. Em decorrência dessa ideia, o falecido político gaúcho é apontado como defensor de criminosos e padrinho de toda uma geração de traficantes. Essa fama, adquirida nas décadas de oitenta e noventa, é produto de uma ampla e articulação das classes dirigentes contra o único governador que teve coragem de enfrentar setores fortalecidos e endinheirados da vida fluminense.

Artigos mentirosos financiados por agências de campanha, matérias irresponsáveis de jornais direitistas e crônicas de escritores desesperados adornavam o ecossistema anti-brizolista. Dessa horrenda composição, inclusive, surgiu um dos mais curiosos homens da nossa história política: Sérgio Cabral Filho, o jovem e promissor adversário ferrenho de Brizola. Tento, através deste artigo, destrinchar a farsa que levou o pedetista à morte eleitoral.

Governador do Estado nos períodos de 83-86 e 91-84, Leonel buscou os caminhos possíveis para combater a violência, mas todas suas tentativas foram descontinuadas por sucessores pouco competentes e de autoridade moral questionável. No começo da década de 1980, jogado no colo de Brizola, estava um Rio de Janeiro marcado pelo clientelismo de Chagas Freitas, três centenas de milhares de meninos e meninas não eram matriculados em escolas, as favelas ainda eram formadas por barracos de madeira amontoados entre vielas de terra batida, a polícia torturava e matava quem bem entendesse – desde que pobre -, tudo isso numa terra de analfabetos explorados como se fossem animais. Aquele Estado, embora enriquecido em comparação aos demais, era fundamentalmente miserável como todo o resto do Brasil herdado dos generais.

Alojado sob os tapumes de madeira e restos de caixotes, é posto o morador de favela enquanto um marginal da vida em sociedade: sem direitos, sempre foi visto como elemento a ser combatido, não ajudado. Mas naquele momento, sob o olhar romântico de um velho esquerdista gaúcho, o pobre tornou-se cidadão e, seu barraco, domicílio inviolável: o que ainda viria a ser estabelecido anos depois pela Constituição Federal de 88.

Naquela época, a polícia aplicava toda a repressão: tortura, violências ainda mais graves e até mesmo assassinato. Os garotos nasciam imersos numa atmosfera de violência: seu universo referencial era o do crime. Aquelas crianças talvez gerassem algum sentimento de reconhecimento no senhor sexagenário parido pobre e em um Rio Grande violento, que vivia plena revolução.

Na segurança pública, o governo Brizola modificou profundamente o direcionamento das políticas do Estado, o que gerou boicotes e muita polêmica. Tratar desse assunto requer bastante responsabilidade, já que a maneira como enxergamos esse período da história do Rio tem impacto direto no enfrentamento de uma problemática grave e ainda contemporânea.

Seria fácil escrever que o Estado era uma bomba relógio prestes a explodir, mas a escandalosa violência já vinha de muito antes. Quando, fugido de Napoleão Bonaparte, Dom João XI chega ao tropical e rústico Rio de Janeiro de 1808, a corte que o acompanhava passou a ser aterrorizada pela bandidagem já incipiente na cidade. Os recém-chegados europeus, alojados em casas tomadas dos brasileiros, ficaram horrorizados. Não que na época não houvesse agressão pior que a vista nas antigas vielas: milhões de mulheres e homens africanos foram arrancados de suas terras, transportados sob condições desumanas pelo Atlântico e usados como se fossem coisa a ser gasta, moída no Novo Mundo. Um ano depois de sua chegada, D. João VI criou a Divisão Militar da Guarda Real da Polícia da Corte. Com o tempo, a guarda real foi se transformando – ao longo de um processo que aqui não irei detalhar -, mas mantendo o seu viés patrimonialista.

No século XX, a polícia seguiu reprimindo não o bandido, mas o cidadão pobre. Não havia limites para a atuação do policial durante a ditadura que se iniciou em 1964, nesse cenário, os direitos de alguns eram reprimidos: sobretudo os daqueles que não se viam representados pelo governo empresarial-militar e nem se beneficiavam do milagre econômico. As favelas, que cresciam aos montes, eram atacadas com remoções e políticas higienistas.

Frente à realidade que apresentei – e que se impunha defronte Brizola – o governo pedetista optou por um enfrentamento da segurança marcado por duas frentes: uma, a do aperfeiçoamento do trabalho policial e, a outra, do investimento no cidadão da favela, com prioridade na infância. No poder, o governador nomeou o Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira como comandante-geral da PMERJ para chefiar a mudança na polícia. A tarefa, por razões óbvias, era no mínimo difícil: como mudar a mente de uma instituição que há séculos perseguia e matava o mesmo setor da sociedade?

Nascido no Rio, mas filho de baianos, Nazareth Cerqueira foi o primeiro homem negro a comandar a polícia militar do Rio de Janeiro. Comandada pelo coronel Cerqueira, a PMERJ jamais foi proibida por Brizola de subir os morros. Apesar da mentira contada até hoje de que foram desautorizadas as incursões, a instituição tinha permissão de atuar em qualquer área que precisasse.

A ordem do governador era de respeitar a inviolabilidade do lar (fosse em um casarão ou nos barracos) bem como a de preservar a vida humana. Essa determinação não foi bem recebida por todos os PMs, como o exposto pelo caso lembrado por Cristina Buarque de Hollanda em seu livro “Polícia e Direitos Humanos”, em que policiais deixaram de prender criminosos na Urca por acreditarem que os direitos humanos inviabilizavam o seu trabalho.

Ao invés de ter passado a mão na cabeça de traficantes, o governador estava preocupado com a violência praticada contra o trabalhador pobre. No caso dos camelôs, por exemplo, Leonel afirmou ao JB: “ninguém vai retirar o pessoal com violência, mas cadastrar todos e retirar os que estão comerciando em nome de empresas estabelecidas (…)”.

Seguindo a linha defendida por Dom Helder Câmara durante a ditadura, o governador rompeu com a prática de remoções e passou a fornecer materiais de construção para que os moradores de favelas pudessem reformar as suas casas. O Santa Marta, comunidade extremamente carente onde era vendida a mais conhecida cocaína da cidade, obviamente teve cidadãos beneficiados. Em homenagem ao recebimento dos materiais de alvenaria, passaram a chamar o pó de “brizola”, situação curiosa utilizada pelos adversários para sustentar a falsidade de que o trabalhista mantinha relações com o tráfico.

Como a criminalidade no Rio sempre teve uma natureza juvenil, o governo empreendeu um projeto capaz de resolver esse cenário a longo prazo. A fórmula era simples de entender: cuidar da criança de hoje para não lidar com o marginal de amanhã.

A preocupação do governador com a infância era representada pelos esforços na educação. Decidido e já empossado, construiu uma fábrica de escolas, de onde saíam módulos pré-fabricados de argamassa armada que, encaixados, formavam os CIEPs, apelidados pelo povo de “Brizolões”. A tecnologia surgida na União Soviética permitiu que as 500 unidades fossem construídas em poucos anos e sob baixos custos. Essas unidades ofereciam três refeições diárias, práticas esportivas e educação artística, além da grade curricular convencional. Todas dispunham de biblioteca e de circuito interno de televisão. As crianças voltavam para casa, muitas vezes barracos nas favelas, de banho tomado. As oficinas, o cardápio variado, as atividades e todo o resto eram um esforço de tirar a infância das ruas e deixá-la segura, sob supervisão de profissionais.

Em 79 (alguns anos antes do primeiro governo Brizola) prisioneiros de Ilha Grande criaram o Comando Vermelho. Nesse contexto, preocupado com o sistema penitenciário, o governador passou a dirigir atenção às unidades prisionais, o que lhe rendeu inúmeras críticas. Nessa área, era planejado um enfrentamento da superlotação, descontinuado pelo seu sucessor.

Pouco lembrado, o CIPOC (Centro Integrado de Policiamento Comunitário) ajudou a providenciar mais de mil empregos para moradores da Cidade de Deus, modificando a relação entre policiais e a comunidade, que passou a auxiliar nas atividades de monitoramento. Além disso, aliando-se às associações comerciais e de bancos, o governo Brizola pôs em prática as operações “Carreteiro” (de combate ao roubo de cargas) e “Cruzeiro” (de combate aos assaltos a bancos). Com o intuito de aperfeiçoar a atividade dos agentes de segurança, o governo também introduziu o TaeKwonDo, arte marcial sul-coreana, nas suas atividades de policiamento. Além disso, foi criada a Operação Integração Polícia Povo, que buscou amenizar a tensão existente entre os policiais e a população.

O cenário externo às possibilidades de atuação de Brizola era bastante complexo, o país enfrentava a hiperinflação e o narcotráfico crescia na América Latina. Com todas as suas problemáticas, a PMERJ precisou enfrentar cada vez mais traficantes poderosos e bem relacionados com carteis de fora, como o de Medellín.

Ainda assim, de acordo com dados do Ministério da Saúde, os dois governos Brizola (83-86 e 91-94) não apresentaram as maiores taxas de homicídios do Estado – pelo contrário, essa posição foi reservada aos períodos em que a segurança pública foi pautada pelo reacionarismo – o que demonstra a eficiência de um enfrentamento que respeita o cidadão e valoriza o trabalhador.

Mapa da Violência Rio de Janeiro

Portanto, prezado leitor, acredito que as tentativas de culpabilizar Brizola pela escalada de violência vivenciada no Rio de Janeiro não passam de sintomas da distorção midiática que buscou desconstruir a imagem do político trabalhista. No fim das contas, o projeto dos CIEPs foi sucateado, a polícia cidadã interrompida, Nazareth Cerqueira morto e Brizola silenciado. Quando nos aprofundamos nos fatos, nas políticas públicas aplicadas e estatísticas dos períodos, percebemos quão frágil é essa percepção torta. Não me contento, entretanto, em apenas fazer uma defesa de um homem que já morreu: é preciso encarar os verdadeiros culpados pela guerra urbana que o Rio de Janeiro assiste atualmente.

Tendo maioria passado pela cadeia, os sucessores de Brizola (quase todos de direita) constituem uma das razões para o fracasso do Rio de Janeiro. Eles, com raras exceções, direcionaram as polícias em direção oposta à defendida pelo ex-governador. No fim das contas, o dinheiro do contribuinte segue sendo gasto aos montes em incursões ineficientes, que geram mortes de todos os lados e estão cada vez mais distantes de resolver a problemática da violência.

Por Bernardo Brandão,
Filiado ao PDT e militante da Juventude Socialista, cursa Direito na UFRJ.