A psicologia de massas hoje

Psicologia de massas hoje bolsonaro fascismo
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Por Daniela Mayorca – Em seu artigo “Psicologia de massas e análise do Eu” (1921), Sigmund Freud busca compreender, à luz da psicanálise, os propósitos e os efeitos dos agrupamentos humanos. Analisar o fenômeno pelo olhar da psicanálise implica considerar os seguintes temas em sua investigação: o inconsciente, como a parte estrangeira de nós que nos habita e o caráter sexual e libidinal dos laços estabelecidos dentro de determinado contexto.

Neste sentido, Freud vai buscar dentro das teorias de seu tempo sobre a subjetividade dos grupos índices que interessam à sua análise. O ano é 1921 e o território que abriga sua escrita é a cidade de Viena, na Áustria. Neste momento, a Europa buscava curar suas feridas da Primeira Grande Guerra, tratar da dor, do luto e dos traumas dos jovens homens que retornam das trincheiras insones e em pânico, assombrados pelas cenas impossíveis de compartilhar, sepultadas pelo intraduzível do horror. Em 1920, Freud dedicava o texto “Além do Princípio do Prazer” à investigação dos sonhos de repetição destes jovens ex-combatentes. Seu pressuposto até então era de que o inconsciente abrigava os conteúdos sexuais reprimidos e que os sonhos eram uma formação inconsciente, de alucinação e de realização destes desejos. O sonho dos soldados, plenos em desprazer, provoca o estremecimento do Princípio de Prazer como gerente do psiquismo humano e faz antever que há algo a mais que nos faz sonhar, que nos faz repetir e isso tem a ver com a morte, com o traumático. Freud concebe então que a Pulsão de Morte, de repetição, de retorno ao inorgânico e a desagregação dividem com a Pulsão de Vida o domínio do funcionamento do aparelho psíquico e o jardim das delícias do princípio do prazer rui, mostrando que também o pior é capaz de nos reger desde nossas profundezas.

Do lado do passado, então, o texto busca compreender os porquês da guerra, do engajamento apaixonado e muitas vezes suicida de sujeitos em agrupamentos que visavam o poder e a aniquilação do outro tido como inimigo. Orientado ao futuro, o texto tenta mapear os elementos constituintes dos discursos fascista e nazista que já se mostravam latentes na sociedade europeia desde esse momento e que tomariam forma de Estado, exército e ideologia de ordenamento dali a poucos anos.

Em “Psicologia de massas e análise do Eu” Freud vai tentar interpretar estes movimentos com as ferramentas sociológicas de que dispõe. É preciso ser compreensível com seu tom conservador e suspeitoso em relação às paixões das massas, localizando sua posição de judeu que seria logo perseguido e exilado de sua terra por essa ideologia nascente de seu tempo. Bem como, pela informação de que o filho de Freud é um dos soldados traumatizados que retorna do campo de guerra em 1919, além das perdas de inúmeros colegas e pacientes nos combates que sofreu, como por exemplo o seu famoso “Homem dos Ratos”.

É preciso também negar as intenções do texto, que são comuns à grande parte da literatura moderna europeia, em sua pretensão de universalidade e totalidade e então localizar o texto no seu tempo e espaço geopolítico. E a partir de toda contribuição da produção da psicologia e da sociologia construída desde 1921 até hoje, nos é permitido então afirmar que a análise das massas apresentada por Freud neste texto não pode ser aplicada a todas as massas, nem sequer a todos os exércitos, como bem apresenta Lukács (1922/2009). O texto é rico e produtivo na análise de uma espécie de formação e agrupamento que importa compreender para melhor lutarmos contra ela e perceber como a tentação a este tipo de formação pode ser encontrada em diversos agrupamentos e que é preciso um esforço ativo para que essas dinâmicas não sejam imperativas nos grupos e coletivos que desejamos construir.

Freud aponta no texto para as massas que se organizam em torno de um líder que para ela encarna seu ideal de Eu, alguém que congrega demonstração de força, potência e até de violência, que se coloca como defensor do rebanho e a ele promete seu amor em troca de subserviência. Seria em nome deste amor comum, que forma um traço de identificação com os outros membros do grupo, que o coletivo permaneceria unido. Por força da identificação ao líder e em nome desta coerência imaginária que ele garante, os indivíduos aceitariam ideias que antes lhes seriam insuportáveis, endossariam e praticariam atos de aniquilação do inimigo apontado pelo líder, tomando dentro desta formação grupal, e em nome dela, atos que poderiam mesmo colocar seu corpo e sua vida em risco.

Esta formação de grupo precisa se ver como homogênea para permanecer unida, sendo absolutamente intolerante com a diferença e repressora, portanto, dessa desidentidade que nos habita constitutivamente e que Freud nomeou como o Inconsciente. Em nome do ideal da coesão grupal tudo mereceria ser feito. Isso é bastante visível agora em que em nome de uma coerência ao apoio a figuras como Bolsonaro, seus seguidores vão cedendo das suas posições, abrindo mão até mesmo de sua segurança física, em nome do reforço da autoridade do “mito”. Uma crítica ao líder é tomada como uma crítica ao indivíduo mesmo que se identifica a ele como forma de proteção ao despedaçamento que uma visão de mundo cindida pela dúvida, pelo desejo, pelo inconsciente provocaria, como em todo ser falante. Assim, permitir o ataque à imagem do líder é abrir caminho para o encontro com a angústia e a sensação de impotência. E é animando a vontade infantil de onipotência e apelando de maneira paranoica aos perigos do mundo, contra o qual somente ele poderia defendê-los, que o líder exorta os indivíduos ao rebaixamento da sua consciência crítica e do cuidado com a própria vida e estes vão, num movimento de servidão e cegueira voluntária segui-lo em qualquer das suas sandices.

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Caso paradigmático são as manifestações sociais públicas pedindo por Ditadura, pedindo por um novo AI-5, quando seriam estes mesmos movimentos de rua uns dos que primeiros a serem proibidos e duramente punidos. Como no texto “Bate-se em uma criança” (Freud, 1919) a fantasia de punição e sujeição do Outro é um apelo desesperado por ser o autor mesmo da apelação, punido e sujeitado por um gozo soberano e mortífero. Ou nos movimentos anti-vacina, que levam pessoas, em nome da palavra do líder, a lutarem ativamente contra a única chance de salvar suas vidas em uma pandemia. A tese de que este tipo de delírio violento tenha apenas aparecido e que sempre tenha estado escondido não dá conta de dizer que o nível de regressão intelectual e radicalização agressiva que vemos hoje foi desenvolvida desde um ponto inicial de identificação com essa figura e que, em nome da manutenção da coerência imaginária leva os sujeitos a um nível sempre crescente de aderência ao discurso do líder e progressiva permissividade à violência.

Vemos aqui, portanto, o que Freud chamou de identificação ao líder e o mecanismo de projeção do narcisismo infantil do indivíduo nele, pela sua capacidade de incorporar os ideais de superpotência do sujeito e possibilitar para ele o contorno da castração. Como no enamoramento, o sujeito fica empobrecido em relação ao investimento libidinal que corre todo para o objeto amado e na identificação que o sujeito vê as características amáveis do objeto identificadas a si, fazendo com que haja um aumento, uma superestimação do seu Eu através da identificação com o objeto. Esse movimento de espelhamento com o líder é o que promove a exacerbação das atitudes de brutalidade no indivíduo e com ele o rebaixamento do pensamento e da consciência críticos do sujeito em favor desse investimento libidinal. O sujeito então se sente maior, pois identificado com esse símbolo de potência e com os outros membros do grupo. Ao mesmo tempo ele tem seu Eu empobrecido pelo intenso investimento da libido no objeto, neste caso, o líder.

A massa analisada por Freud funciona de forma Una, ela deseja fazer da congregação de muitos Um único grupo, homogêneo em ideais, características, potências e inimigos. A ideia de massa, como descrita por Freud está relacionada, não por acaso, com o símbolo imagético do fascismo italiano de Mussolini: a fasce (ver imagem anexo). O símbolo de origem etrusca constitui-se de um feixe unificado de varas finas de bétula branca amarradas por correias vermelhas (fasce), com uma lâmina de machado que emerge do seu centro (Haines, 2000). O simbolismo da fasce sugere que a força deriva da unidade; um único graveto é facilmente quebrado, enquanto um feixe de gravetos agrupados é resistente. No final do século XIX, os fasci eram os grupos políticos e paramilitares que constituíram a base do movimento fascista. A massa é esse agrupamento que retira sua força de uma unidade de muitos iguais, unidos por um agente agregador externo que os mantém juntos e de onde emerge a força, a autoridade e a lâmina capaz de fazer morrer.

Psicologia de massas hoje brasão de armas da república da itália durante o fascismo
Brasão de Armas da República da Itália durante o fascismo

O texto de Freud tem a capacidade de explicitar esse apelo à unidade e à identidade característico dos movimentos de massa e apontar para o seu potencial destrutivo e ameaçador da alteridade, esta mesma que nos constitui. O ideal de perfeição e de pureza do nazismo e das massas fascistas autorizou a aniquilação dos considerados diferentes, dos deficientes, desviantes, estrangeiros, dos ‘impuros’. Este tipo de intolerância e violência contra a alteridade é o que se vê como fundamento dos movimentos neofascistas no mundo ainda hoje. O fascismo à brasileira marca o signo da igualdade e da pertença ao grupo tudo aquilo que se pinta de verde e amarelo, e como inimigo tudo que se pinte de vermelho. Uma forma fácil e quase infantil de compreender o mundo. Durante a pandemia do novo Coronavírus isso ganhou contornos ainda mais perversos: aqueles que não tem “histórico de atleta” deveriam poder ser dispostos à morte, diz o soberano. A condenação da vulnerabilidade, a intolerância frente à toda diferença é então o que caracteriza a massa e nos faz temer a sobrevivência e a emergência destes discursos sob novas roupagens no presente.

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Ler o texto de Freud como localizado em sua época e contexto nos permite tomar a perspicácia de sua análise no que ela contribui para nossa compreensão do mundo atual, porém somente a partir de uma leitura não universal de sua teoria. Assim podemos dizer que nem todo agrupamento é massa (embora possa tender a ser), nem toda multidão é uma fasce e nem todo coletivo caminha na direção do Um. Contrários a essa homogeneização fascista do mundo vemos emergir movimentos sociais e coletivos que se constituem precisamente pela defesa da diversidade, do direito a uma relação complexa com o mundo e da vida dos ‘vulneráveis’. Movimentos que se unem não pela força sufocante da vontade de igualdade e supremacia, mas precisamente na luta pelo direito à existência de formas diversas de vida: indígenas, negros, mulheres, homossexuais, transsexuais, enfim, a luta pela vida nas suas condições de abertura à contingência e a singularidade. A precaução de Freud em seu texto não se aplica, portanto, a todos os grupos, e não se aplica precisamente aos grupos que não se propõem a ser Todo.

Desta forma, a leitura da psicologia de massas pode nos orientar para diferenciar os agrupamentos humanos em relação à sua abertura à vida em sua potência, que vem pela convivência do que não é igual e condenar com a mesma pena, pela história, os movimentos de massa desejosos de homogeneidade e apostar que estes últimos possam ser derrotados como única forma de termos ainda um futuro respirável – no que esse significante condensa desde a súplica de George Floyd, nossas florestas sufocadas pelas chamas e os que agonizam nas filas dos hospitais brasileiros hoje. Assim, podemos advogar com as palavras de Freud por menos movimentos de massas, por menos iguais simplificados e por mais coletivos diversos, mutantes, complexos e indefiníveis como a vida mesma. A vulnerabilidade de cada um, no que ela torna possível o amor e a palavra trocada, continua sendo nossa única via de construção de outro futuro possível.

Por Daniela Mayorca: Psicóloga e psicanalista. Organizadora do livro “Corpos que Sofrem: Como lidar com os efeitos psicossociais da violência?” (2018).

Referências Bibliográficas:

Freud, S. (1919/1995). “Uma criança é espancada: uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais”. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago.

Freud, S. (1920) Além do princípio de prazer (1920). In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago.

Lukács, G. (1922/2009) A Psicologia das massas em Freud. In: “Psicanálise & Barroco em revista v.7, n.1”: 219-224, jul.2009. (Trad.) Carli, R.

Haynes, S. (2000). Etruscan civilization: A cultural history. Los Angeles: J. Paul Getty Museum.