A primazia do projeto no processo eleitoral, para mitigar os vícios do criptossemipresidencialismo

A primazia do projeto no processo eleitoral para mitigar os vicios do criptossemi presidencialismo
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Caracteriza o presidencialismo brasileiro, por influência do modelo americano, o impasse. Para que o governante não tenha meios de sucumbir a tentações imperiais ou autocratas, formulam-se dispositivos de contração e inibição de sua performance, os conhecidos freios e contrapesos. No jogo dos poderes do presidencialismo brasileiro, o mais contundente desses dispositivos é o instituto da presidência da Câmara. A ela é facultada a pauta dos temas da agenda governamental em matérias que precisam passar pelo congresso – matérias que costumam ser as mais importantes.

Desde a redemocratização, poucos foram os momentos em que o alinhamento entre o presidente da República e o da Câmara dos deputados foi instantâneo e destensionado. Em nosso criptossemipresidencialismo, o usual é amortizar ou lubrificar os impasses por meio das negociações constantes entre governo e congresso. Tudo em nome do controle do ímpeto autoritário a que todo governante estaria, em tese, vulnerável. Esse princípio institucional e seus dispositivos, contudo, nos tem gerado mais problemas do que garantido a consagração da democracia, quase inteiramente restrita a um sufrágio universal protocolar.

O fracasso parcial dos freios e contrapesos, observada a norma da pauta congressual pelo presidente da Casa, não se verifica apenas na conversão da atividade política em rotinas de toma-lá-dá-cá – que, como se sabe, pode chegar até ao impasse da destituição do presidente. Mais grave é a suspensão, quando não a cassação, da vontade popular, que deu ao presidente da República, não ao da Câmara, o poder de comando da nação e que só é atendida – e parcialmente – quando o congresso tem a bondade de levar adiante as demandas populares que venceram o certamente eleitoral.

Eis o impasse sistêmico: parte significativa da agenda governamental requer aprovação do congresso. A aprovação do congresso requer que os componentes da agenda sejam pautados. Quem pauta é o presidente da Câmara. O presidente da Câmara é eleito por uma eleição entre colegas – por vezes, interessados em abiscoitar recursos para conservar sua base eleitoral. Nesse lodo, o presidente da República é chantageado a usar seu poder para atender os interesses comezinhos – não necessariamente antirrepublicanos – dos deputados. Mas esse atendimento implica sacrifícios ministeriais e gasto de energia governamental, que diminuem ou esterilizam a sua capacidade de cumprir promessas de campanha. Quem determina a priorização e a constância desse atendimento é o presidente da Câmara.

Não convém enfraquecer o congresso e dar poderes absolutos ao presidente da República. Não convém, por outro lado, mantermos esse desenho como se ele fosse desejável. O que fazer?

A tarefa está no processo eleitoral e em seu entorno. Uma maneira de o presidente não ficar vulnerável ao lobby congressual liderado pelo líder da casa é alterando o método das eleições.

Proponho que se confira primazia aos projetos, e não mais a atores e partidos políticos no processo eleitoral. Isso pressupõe a revisão do conteúdo da legislação concernente às eleições.

A Constituição prescreve inelegibilidade apenas a inalistáveis eleitoralmente e analfabetos, deixando a legislação complementar se encarregar dos detalhes quanto às candidaturas. Mas, estranhamente, o Código Eleitoral não faz qualquer menção à palavra projeto, como requisito para um partido registrar seu desejo de concorrer. A Lei Nº 9.096, de 1995, que dispõe sobre os partidos políticos, prevê estatuto e programa, para cuidar da rotina e para fixar princípios e valores, mas não projeto de país com propostas que interpretem e solucionem problemas nacionais no médio e no longo prazo a partir da conjuntura vigente. Essa inexigência precisa ser enfrentada.

A ideia é que as candidaturas sejam cadastradas com antecedência significativa com a submissão de um projeto de país. Esse projeto deve informar qual o rumo do governo de acordo com o pleiteante. O cadastro permanecerá sendo feito pelos partidos, mas não terá que ser condicionado ao nome de um candidato – que poderá aparecer depois, no bojo das tratativas partidárias. Os partidos, em negociação interna e entre si, decidirão qual representante tocará aquele projeto, liderando ou não uma coligação partidária, por critérios próprios. Na prática, o processo eleitoral para o executivo precisaria começar antes do processo para as casas legislativas. É que, sob a primazia do projeto, estas refletirão o conteúdo das candidaturas daquele.

O tempo de propaganda deverá ser calculado para que mais da metade seja dedicada à apresentação do projeto, em vez de se facultar aos partidos tocar campanhas focadas em intrigas e baixarias. Isso servirá, sobretudo, para que a imprensa e a sociedade civil tornem o embate republicano entre os projetos o centro da disputa eleitoral.

É esperada uma discreta mudança da cultura política nacional: os deputados e senadores precisarão ajustar suas bandeiras à dos projetos em concorrência, informando ao eleitor a adesão total ou parcial a um deles, em respeito aos valores e objetivos de suas próprias candidaturas e carreiras. Ademais, diminuirá a atuação parlamentar oportunista e facilitará uma rotina em que mesmo a oposição possa votar com o governo se o tópico for convergente. A oposição ideológica perderá força face o pragmatismo, mas o pragmatismo será qualificado pelas tarefas em vez de maculado pelo arrivismo.

Condicionando-se a vitória eleitoral ao projeto, a Câmara dos deputados terá a obrigação de atender o governante no que diz respeito à pauta que deu a ele o poder. O humor do presidente da casa não poderá mais negligenciar acintosamente o que será ou não discutido e votado, desde que venha do governo no bojo de consumação do projeto que elegeu o governante. Sob esse imperativo institucional, a hierarquia e a ordem do cumprimento das tarefas poderão ser negociadas e será saudável se o for. Mas o travamento arbitrário e o boicote revanchista, tal como conhecidos hoje, serão vistosamente dificultados.