Paulo José Hespanha Caruso, a fúria elegante

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SENTI MUITO A MORTE DO PAULO CARUSO. Com ele se vai um pedaço da história da imprensa brasileira, no que toca a valorização e autonomia da imagem, dos espaços largos conquistados por chargistas, ilustradores e quadrinhistas e, especialmente, à conquista de algum equilíbrio crítico nos jornalões. Isso não existe mais.

Eu sei, eu sei, o jornal impresso está fadado à extinção e o papel está com os dias contados. Mas o mantra não explica o fato de – desde os anos 1990, quando o pensamento único foi implantado na mídia e nos redutos da inteligência nacional – as ideias dissonantes terem sido empurradas para fora das edições. Não foram eliminados totalmente, mas foram reduzidos ao mínimo, com o objetivo de aparentar uma democracia opinativa que não existia de fato, numa mídia acostumada a repetir que o país está sempre diante de uma escolha difícil.

PAULO É GERALMENTE COMPARADO AO SEU IRMÃO CHICO. Sempre preferi o primeiro em relação ao segundo. O desenho de Paulo é mais solto, mais escrachado e mais boêmio que o de Chico. Paulo tinha um quê de Jaguar, de experimento feito a quente, de caricatura traçada em mesa de botequim (uma de suas especialidades). O irmão, chargista do Globo desde o final dos anos 1970, foi se tornando ao longo dos anos mais acadêmico e contido nos voos gráficos e mais conservador nas opiniões. Tornou-se quase um editorialista gráfico, um Merval que desenha. Paulo nunca parou muito tempo num só emprego. A elegância de suas linhas sempre enquadrava um tanto de protesto e inconformismo.

Paulo nunca fez um Lula definitivo, um FHC modelar, ou um Maluf canônico, para nos fixarmos em algumas figuras da vida nacional. Cada Lula de cada charge do lado paulista da fraternidade carusial era único, resultado de uma interpretação ímpar. Isso acontecia com seus incontáveis FHCs, ACMs, Malufes etc. Era como Bob Dylan, incapaz de cantar da duas vezes da mesma maneira ‘Blowin’ in the wind’. A cada show, a cada álbum, parece que a gente ouve uma música, com arranjos e até letras diferentes.

NOSSO HERÓI DESENHAVA COMPULSIVAMENTE. Em todas as vezes que o encontrei, ele estava com um lápis ou uma caneta qualquer na mão a rabiscar furiosamente quem estivesse em volta. Desenhar era seu respiro, seu modo de encarar a vida, sua cachaça (mas não seu uísque).

Quando vi seus desenhos pela primera vez nas páginas do Balão – gibi alternativo que ele fazia com o irmão, mais Luiz Gê, Laerte, Xalberto, Angeli e vários outros no início dos anos 1970 -, literalmente chapei (ainda se usa o termo?). Paulo era um quadrinhista potente (essa está na moda, eu sei) e inovador. Não havia como não querer imitar seus traços. Parte dessa turma fazia arquitetura na USP. É para lá que fui, na vã esperança de aprender a desenhar direito.

Tive a felicidade de organizar um livro – “Os filhos da Dinda”, Scritta, 1992 – de charges sobre a derrocada da Era Collor, do qual, além dele, participaram Chico, Laerte, Negreiros, Glauco, Jal, Alcy, Claudius e este que vos fala.

Pois toda essa explosão criativa e toda essa fúria gráfica estava há anos fora da imprensa. Jornais fazem hoje homenagens a esse artista estelar, mas fecharam-lhe as portas e páginas há pelo menos dez anos. Seu trabalho e sua competência podiam ser vistos uma vez por semana no Roda Viva, da TV Cultura. Em algumas oportunidades, ele trabalhou em restaurantes, caricaturizando a freguesia, como parte do couvert artístico, para completar o orçamento.

A grandiosidade de Paulo José Hespanha Caruso, 73, fica em seus milhares de trabalhos produzidos ao longo de uma carreira de mais de 50 anos e em vários vídeos de seus shows, no Youtube. Nunca se candidatou para a Academia, mas tornou-se imortal.

O desenho abaixo é quase uma autocaricatura, feito no Balão, em 1974. Mocinho de tudo!

Paulo Jose Hespanha Caruso a furia elegante