O projetinho do Hitler tropical

Sobre fundo branco, o cabelo e o bigode de Hitler aparecem em preto. O bigode está no formato do território brasileiro.
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No decorrer da campanha presidencial, uma reportagem da Revista Piauí formatou nuvens de palavras dos programas de governo dos candidatos com o objetivo de mostrar os temas mais presentes em cada um deles. O vazio de projetos do programa de Bolsonaro foi preenchido sobretudo pelas palavras “Brasil”, “Deus”, “Acima” e… “Bolsonaro”.

Mas a inexistência de projetos no programa de governo não quer dizer que o presidente não possua uma agenda. Em política, discurso é ação. É por isso que, por meio de uma análise de um discurso cometido quando do lançamento de sua candidatura pelo PSL em julho de 2018, nas próximas linhas, passamos a desvendar aquele projeto de país rudimentarmente rascunhado em seu programa.

Bolsonaro chegou ao poder encarnando o político antissistêmico, que não se conforma às regras do campo político, e essa identidade é apresentada logo no início de seu discurso: “se vocês estão aqui, é porque acreditam no Brasil. Não temos um grande partido, não temos fundo eleitoral, não temos tempo de televisão, mas temos o que os outros não têm: que são vocês, o povo brasileiro… eu sei o desconforto que venho causando. Sozinho, com alguns poucos políticos ao meu lado e amigos, naquilo que se chama de establishing (sic), ou máquina, ou sistema. Sabemos disso: eu sou o patinho feio nessa história”. 

Na operação para descolar sua imagem da política tradicional, Bolsonaro se coloca como um “outsider”. Ele dirime essa conspícua contradição com o argumento de que foi justamente por sua honestidade que nunca fez parte do establishment tradicionalmente corrupto da política nacional. Porém, como na fábula, instrumentaliza seu aparente “defeito”, ou diferença, a seu favor, como aquilo que permite a ele enfrentar o sistema e articular um discurso de mudança caro ao populismo: “nós temos como fazer esse Brasil grande. Para fazê-lo, para que esse time seja campeão, o seu técnico, o seu chefe, o seu comandante, o seu presidente da República não pode estar devendo nada a partidos político (sic) nenhum”.

E como o líder constrói a identidade do inimigo? No discurso em análise, pronunciado em 22 de julho de 2018, para reforçar sua identidade “contra tudo o que está aí”, Bolsonaro estabelece dois alvos principais: a corrupção e a ideologia. Ambas características funcionam como homogeneizadoras dos adversários e diferenciais entre “nós” e “eles”, os segundos corruptos e ideológicos, portanto. A elite, identificada como ideológica e corrupta, é relacionada a um partido especificamente – o PT – e a um eixo do espectro político – a esquerda. Mas se a corrupção resume todo o sistema, independente do espectro ideológico, a ideologia é localizada no extremo oposto, isto é, à esquerda: “de um lado está a linha esquerda, de outro tá um centrão. Até quero agradecer (sic) Geraldo Alckmin, por ter juntado a nata do que há de pior no Brasil a seu lado… eu costumo dizer que algo tão ou mais grave que a corrupção é a questão ideológica que tomou parte, que tomou conta de grande parte do Brasil… uma pátria maravilhosa que o PT tentou nos dividir”.

Interessante nessa última frase a estratégia recorrente mobilizada por vários atores políticos contra o PT: ao partido é imputada a pecha de “conflitivo” ou “populista”, visto que estaria sempre tentando criar uma “divisão” dentro da harmônica sociedade brasileira, mesmo com toda a docilidade do partido para com a banca e suas enormes coalizões antirreformistas no Congresso. Além disso, há o surfe no antipetismo histérico, com a narrativa de que o PT é o inimigo do povo, destruiu o Brasil e é o partido que impede o consenso e a unidade nacional, o que acaba por beneficiar o próprio PT que se estabelece como única referência nas esquerdas.

Em outro momento, ao relatar como entrou nas forças armadas, Bolsonaro exalta sua educação do período militar a fim de comprovar sua “falta de ideologia”: “com o ensino daquela época com muita responsabilidade e sem ideologia de gênero e sem doutrinação fui aprovado”. Continuando a fustigar a “ideologia”, o candidato cita, de cabeça, editorial de O Globo escrito por Roberto Marinho em 7 de outubro de 1984: “Participamos da revolução de 1964 identificados com os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas, ameaçadas pela radicalização ideológica, greves, distúrbios sociais e corrupção generalizada. Fecha aspas. Qual a diferença daquela época para hoje? Eu acho que hoje até está mais grave”. Em outro momento, Bolsonaro especifica a identidade da ideologia que busca combater: “esse Brasil é nosso, a nossa bandeira é verde e amarela. Nós não aceitamos o comunismo”.

A primeira fronteira forjada por Bolsonaro é eminentemente política: “eles”, nesse caso, são os políticos do sistema corrupto, os partidos, o establishment em geral, os políticos de esquerda e o PT em particular. Além disso, com a “questão ideológica”, Bolsonaro traça uma fronteira antagônica moral que consiste em contrariar qualquer possibilidade de reconhecimento das diferenças sociais identitárias que são caras à esquerda (ainda que com diferentes prioridades): classe, gênero, raça, região, etc. “Eles” passam a ser as pessoas que possuem ideologias contrárias aos valores da família tradicional e que, em alguma medida, reconhecem que as identidades sociais possuem especificidades e, portanto, merecem tratamento político específico se a igualdade é um valor a ser assegurado. Ao contrário, a manutenção das desigualdades “naturais” vistas sempre individualmente está de acordo com a visão da direita, segundo Bobbio, para quem o individualismo e a intolerância à diversidade étnica, cultural e sexual são ingredientes importantes.

Na visão defendida por Bolsonaro, a “ideologia” – sempre identificada com o pensamento contrário ao seu – impede a união do “povo” do Brasil. “Vamos unir brancos e negros, homos e héteros, e o trans também, não tem problema. Cada um faz o que bem entender, seja feliz. Vamos unir nordestinos e sulistas. Vamos abafar esses pequenos movimentos separatistas que vemos pelo Brasil. Unir ricos e pobres. Passou a ser crime no Brasil ser rico? Vamos unir patrões e empregados, não semear a discórdia entre eles”. O apelo à divisão social é cara ao populismo. Ora, mas se Bolsonaro fala em unir a sociedade, por que seria populista?

Vimos que a fronteira que Bolsonaro estabelece é política e moral. Nesse caso, o inimigo não é um adversário político legítimo a ser combatido por meio das eleições, mas uma identidade política que deve ser exterminada, como os comunistas, visto que estes ameaçam o suposto consenso obtido politicamente pela maioria. Nesse sentido, Bolsonaro revive neste pronunciamento sua primeira experiência cívica: “eu conheci o exército brasileiro numa de suas operações no Vale do Ribeira… caçando integrantes da VPR- Vanguarda Popular Revolucionária”. Assim, podemos extrair que os ativistas dos movimentos sociais, intelectuais de esquerda, artistas que contestam os “valores da família”, políticos de esquerda, minorias que lutam por igualdade, trabalhadores que fazem greve, entre outras categorias sociais, poderiam todos ser rotulados de comunistas e, portanto, passíveis de serem caçados.

O Brasil está cindido entre “Nós”, os cidadãos de bem, cristãos, que respeitam os valores da “família brasileira”, que praticam suas intimidades em “ambiente propício para tal”, que não contestam a ordem estabelecida de um lado, tampouco questionam o consenso obtido pela maioria, e “eles”, os “comunistas”, “dos pequenos movimentos separatistas que vemos pelo Brasil”, de outroNesse raciocínio antagonista, típico do populismo, não há espaço muito para as diferenças políticas, visto que os diferentes são “inimigos” a serem exterminados. A manutenção do conflito nos moldes democráticos pressupõe, como ressalta Mouffe, que seja possível aos adversários políticos a convivência pacífica. O capitão, por sua vez, parece desconsiderar valores essencialmente democráticos como a tolerância e o pluralismo político, representados por ativistas, movimentos sociais, intelectuais e políticos de esquerda, que ameaçam a ordem pela “radicalização ideológica”. Em sua visão, a diferença do período da ditadura para hoje é que “hoje até está mais grave”.

Tanto o militarismo quanto o neoliberalismo compõem o conjunto de ideologias hospedeiras do populismo do presidente (bastante identificado com o conceito bobbiano de direita): “ uma diferença enorme de um quartel para o meio político. No quartel, você tem companheirismo, patriotismo, disciplina e hierarquia, amor à pátria. Na política, não”. Aqui o capitão lamenta que os valores dos quartéis sejam tão diferentes dos valores da política democrática, porque fundados na explicitação do conflito social e na tentativa de negociação entre os diferentes. Uma visão totalitarista transparece neste trecho, pois as diferenças parecem incomodar ao ponto de não serem toleradas e uma visão da vida social como uma totalidade na qual todos os campos deveriam ser regidos pelos mesmos valores, portanto, fica clara.

Ademais, o veterano parlamentar se mostra tão inconformado com os valores e com os impasses típicos da política democrática que chega a confessar: “há 20 anos eu disse que gostaria de fechar o Congresso. Momento de indignação, de revolta, que todos nós passamos. E eu sou um ser humano que é exatamente igual a todos vocês: tem uma alma, tem um coração”. Neste trecho uma caraterística tão presente na legitimação carismática do povo para com o líder é ressaltada, porquanto mesmo possuindo dons extraordinários perante o olhar do povo (mito), os líderes ainda são vistos “gente como a gente”, porque também têm “momentos de indignação”, “alma” e “coração”.

O militarismo inscrito no discurso do capitão busca mobilizar dois discursos específicos: o discurso anticorrupção e o discurso da negação da política. Assim, exalta os valores de hierarquia, obediência e, ao mesmo tempo, diz que: “o entrave é o parlamento. Eu ouso dizer que grande parte dos parlamentares querem agir de maneira diferente do que age os líderes partidários que, na verdade, são líderes sindicais. Vamos tirar o sindicato de dentro do Congresso Nacional”. Ao longo de todo o discurso, o capitão associa a política parlamentar à corrupção e os valores do exército à honestidade e retidão. Portanto, a demanda anticorrupção não será atendida por meio de propostas legislativas práticas discutidas amplamente pelos representantes políticos que formam o Legislativo, mas por meio de uma seleção de valores retirados das forças armadas que deveriam ser transplantados para a política. A obediência e a hierarquia, obviamente, sendo valores exaltados nessas condições, contrapõem-se exatamente ao questionamento e ao debate democrático das regras.

Nesse sentido, as demandas legítimas de boa parte da população por segurança pública são discursivamente resolvidas por meio dos valores militaristas. A seguir, o capitão parece crer que os comunistas estão prestes (vale o trocadilho) a assaltarem o poder, por isso a solução passa pelo fortalecimento das hierarquias militares em todos os campos sociais, um caminho aberto para arbítrios de toda sorte. “Meus amigos, meus irmãos policiais militares, policiais civis, bombeiros militares, policiais federais, rodoviários federais, agentes penitenciários: mais que um sonho, isso sim é uma obsessão: é conseguir a retaguarda jurídica para que vocês possam muito bem cumprir a sua missão. Meus irmãos da Marinha, do Exército e da Aeronáutica vocês serão reconhecidos do meu governo. Vocês são atacados diuturnamente. São acusados dos maiores absurdos por essa esquerda que está aí. Sabem por quê? Porque vocês são o último obstáculo para o socialismo”. No entendimento do então candidato – agora presidente do Brasil – o agente de segurança cumpre sua missão quando está liberado para matar em serviço sem ser constrangido a responder processo para comprovar o estrito cumprimento de seu dever funcional ou sua legítima defesa.

Os valores militaristas do capitão ficam ainda mais evidentes quando, mais uma vez, retoma o discurso dos anos de chumbo no Brasil para dizer que os militares das forças armadas “são o último obstáculo para o socialismo”. O próprio slogan de sua campanha, que relembra lemas dos anos ditatoriais, revela o quão internalizado está o militarismo em seu discurso: “Brasil acima de todos, Deus acima tudo”. Essa visão de que o Brasil está em guerra social dialoga com a sensação generalizada de insegurança de uma sociedade que sofre com mais de 60 mil homicídios por ano. Assim, além do apelo à violência, como forma de prover segurança pública, todo o discurso do presidente está permeado por ideias militaristas de “resgate” do Brasil – provavelmente, o Brasil de antes do reconhecimento dos conflitos sociais e da diversidade da população – e de um suposto patriotismo (pelos EUA?): “o Brasil precisa eleger no corrente ano um homem ou uma mulher que seja honesto, que tem Deus no coração e que seja patriota”.

Bolsonaro também foi incorporando um discurso liberal na economia a partir do espraiamento do discurso anticorrupção, após os espetáculos midiáticos promovidos pelas investigações da operação Lava Jato, cujo juiz de primeira instância Sérgio Moro, verdadeiro líder da operação (no Brasil), viria a se transformar em seu “superministro” da Justiça. Quando oficialmente se lançou candidato, Bolsonaro já era objeto de elevada admiração pelo mercado financeiro e pelos setores mais ricos e escolarizados da população. Assim ele retribui o carinho: “Queremos, prezado economista Paulo Guedes, buscar realmente a liberação da nossa economia. Buscar o liberalismo. Queremos sim, mais que privatizar, quem sabe até extinguir a maioria das estatais”. Nesse trecho, os valores do individualismo, da supremacia da propriedade privada e da livre iniciativa, tão caros à direita segundo Bobbio, aparecem com clareza.  Paulo Guedes foi o primeiro ministro a ser anunciado por Bolsonaro, e foi alçado à categoria de “guru governamental” para assuntos econômicos. Banqueiro ultraliberal, PhD em economia pela Universidade de Chicago, Guedes possui como principal plataforma a venda do máximo de ativos estatais possíveis para amortizar a dívida pública, e assim diminuir os gastos do Estado. O mercado, além de gostar da ideia de comprar estatais na bacia das almas, é muito afeto ao dogma de que o Estado deve ser mínimo, para o outros.

O populismo militarista e neoliberal de Bolsonaro apresenta respostas concretas às demandas sociais que sempre se avolumam em períodos de crise econômica e política. Para a crise ética, o capitão oferece sua trajetória identificada com a honestidade. Em relação à economia, reaproveita o diagnóstico ortodoxo de que a reativação do crescimento brasileiro será feita por meio de privatização e desregulamentação da economia, num viés neoliberal. Além disso, o tema da segurança pública e da ordem, amplamente popular, também foi sendo diagnosticado como falta de pulso das autoridades e de leis mais rigorosas, além de ter relação com ideologia dos inimigos da esquerda. O símbolo mais popular da campanha do capitão, o gesto de arma com as mãos, revela a priorização do uso da força para resolução dos conflitos, como aqueles promovidos pelos inimigos políticos.

Destarte, a hegemonia discursiva e eleitoral conquistada por Bolsonaro em 2018 se deu por essa capacidade em tornar seu próprio nome um significante vazio. O significante “Bolsonaro” passou representar os elos de demandas sociais insatisfeitas, da segurança pública ao fim da corrupção, passando pelo conservadorismo moral e pelo liberalismo econômico, se apresentando como solução da crise política das instituições do Estado: “..é nesses momentos de desequilíbrio, incerteza ou de conflito que estão cronologicamente situados os apelos mais veementes às intervenção do herói salvador” (GIRARDET, 1987). Bolsonaro, portanto, está formando um “povo” em permanente mobilização virtual, que é apenas uma das partes da fronteira antagônica estabelecida contra o “sistema” e contra as “ideologias”, mas que busca ser a totalidade do social: eis o seu projeto.

 

*trecho adaptado de um artigo de Caio Barros e Cristiane Brum intitulado “Populismo no Brasil Contemporâneo: uma análise de discursos de Lula e de Bolsonaro”, que compõe o livro “Comunicação, Mídias e Educação 2” a ser lançado pela Atena Editora em novembro.