O Brasil caipira de Tonico

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Por Luiz Campos – Quando pensamos sobre a música caipira raiz, aquela tradicional com viola e violão, o sentimento dominante é a saudade. Saudade dos artistas que partiram, como o grande Tonico, que faria 106 anos hoje; saudade da era de ouro da música sertaneja de raiz, hoje um estilo restrito aos nichos de resistência contra o comercialismo do sertanejo universitário; saudade de um Brasil mais simples e tradicional, onde a moralidade do homem do campo se conservava; a saudade dos amores do passado, cantada de modo passional pelas duplas clássicas. Esse mundo ainda existe?

Aqui também cabe a pergunta de que Brasil era esse da música caipira. Tonico e Tinoco, nas décadas de 1940 e 1960, já cantavam um país em transformação, a saudade já era o que afinava suas vozes duetadas ao som da viola cabocla. Os irmãos caipiras eram os trovadores de um povo que já começava a abandonar o campo em direção às cidades, em busca de sonhos que muitas vezes não se realizavam. Narravam um Brasil rural que dava seus primeiros passos rumo à modernização que, ao mesmo tempo, foi presente e maldição. Foram uma dupla que, junto com várias outras, fez muito sucesso no período da grande marcha oeste adentro do sertão brasileiro, bebendo em ritmos, via Pantanal, de nossos irmãos paraguaios. Um olhar mais crítico desvela um elemento nem sempre percebido nesse estilo musical: o de crônica das sagas de todo um povo, em que os fonogramas são como documentos históricos. A música caipira não é culturalmente reacionária, mesmo estando atrelada à visão de mundo conservadora do Brasil Profundo. Ela é um gênero musical que interage com seu entorno, sendo influenciada e influenciando. O Sertanejo Romântico da década de 1990, uma mutação da música caipira, em seu papel enquanto trilha sonora do neoliberalismo da era Collor, é a continuação desse fenômeno. A música rural narrando a odisseia do caipira, seja ele ainda em sua morada no campo, seja já urbanizado como proletário vivendo em subúrbios dos grandes centros.

Tonico e Tinoco, com suas canções cheias de narrativas visuais, foram mestres nessa arte dos causos musicados. Sejam a desventuras de Chico Mineiro, sejam as belezas de um Brasil Caboclo, a dupla foi mais do que simples música, ela é ainda hoje a voz de uma memória coletiva. Uma memória bastante numerosa: é quase surreal vermos hoje em dia, nas listas de maiores vendedores de discos em todos os tempos em nosso país, que Tonico e Tinoco estão lá no topo, ao lado de nomes como Roberto Carlos. Ninguém se torna tão popular assim, principalmente entre o povo simples, sem sintetizar verdades coletivas e sentimentos das massas em seu canto.

O Brasil cantado por Tonico e Tinoco sempre existirá, pois não é um país idealizado num passado quase mítico. Enquanto existir um jovem se interessando pela cultura de seus antepassados, enquanto um senhor na cidade sentir saudade de sua infância na roça, enquanto a culinária do interior sobreviver, enquanto existir um professor ou um aluno de viola, esse Brasil existe resistindo. Não importa a tirania cultural do Sertanejo Universitário, nem a neoliberização do campo e de boa parte de seus habitantes. O Brasil Caipira de Tinoco sobrevive como ideia que está viva no mundo e se revela muito vivo para quem sabe buscá-lo. As autênticas duplas caipiras, todas discípulas dos mestres Tonico e Tinoco, ainda hoje não cantam apenas lembranças e fantasias, mas sim a visão de um tipo de brasileiro que anseia por sobreviver. O caipira.

Por Luiz Campos

Publicado pela Frente Sol da Pátria

O Brasil caipira de Tonico