A Era Neoliberal do Brasil

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A Era Neoliberal do Brasil

Por Thiago Machado

O tempo é senhor da história, ele permite observar nossa sociedade em perspectiva e com isso possibilita que se veja certos processos até então nebulosos. A partir dos dados do IBGE se percebe que o crescimento do Brasil, desde 1990, tem sido marcado por uma quase estagnação, com um breve período de melhora e que se reverte desde o final de 2014. Diante desse quadro, a pergunta histórica que se deve fazer, para aqueles que se preocupam com tal mudança e normalização desse processo é: quais os motivos dessa quase estagnação econômica? E com isso refletir seus reflexos econômicos e sociais.

Como ponto de partida, pode-se compreender a ruptura histórica, e o avanço do “Consenso de Washinton” e a agenda da macroeconomia que se apresentou a partir do “Novo Consenso Macroeconômico”, no mundo e no Brasil. Para uma análise, a partir da macroeconômica da demanda efetiva, e seus efeitos de longo prazo, compreende-se que essa mudança de paradigma na gestão macroeconômica desencadeou um processo de quase estagnação nacional. Essa estagnação tem sido marcada em uma crescente agenda econômica, que visa controlar a despesa pública. Essa mudança de paradigma pode ser vista como no gráfico abaixo:

Neoliberal

Entre 1947 a 1980, a renda per-capita do Brasil cresceu 335%, em 34 anos. Por seu turno, de 1990 até 2021 a renda per-capita cresceu somente 35%, em 32 anos. Estamos crescendo a um ritmo 10 vezes mais lento do que já crescemos, derivado da agenda da ortodoxia econômica, ou em termo popular “Neoliberal”. Ao invés de 50 anos em 5, de JK, estamos mais para 5 anos em 50.

O neoliberalismo não é uma categoria estanque, pois se trata de uma emergência histórica, e com isso possui múltiplas dimensões. Dessa forma, ele também se apresenta com várias nuanças e gradações em sua manifestação e até por isso seu estudo tem que ser polivalente. De uma perspectiva da macroeconomia e uma reflexão de aspectos da dinâmica de acumulação, o regime do Estado, seu conjunto de práticas econômicas e seu desenho institucional são peças chave para se compreender a dinâmica de crescimento de um país.

De início, pode-se tratar de algumas características centrais do desenrolar da “Era do Neoliberalismo no Brasil”. Da perspectiva macro, a gênese do avanço de ideias do monetarismo; da teoria ligada aos ciclos reais de Lukas e as expectativas racionais, o debate entre Kydland e Prescott sobre o debate de regras e discricionariedade, que resultou no que ficou marcado como o “Novo Consenso Macroeconômico”. Essa gênese desenvolveu um conjunto de ideias e valores na gestão da política monetária e fiscal, que visa a ressignificação do papel do Estado, com a coordenação da política pública a partir de interesses privados de poucos e dominância da política monetária.

Esse Novo Consenso, se estrutura a partir de um conjunto de ideias da teoria marginalista. É dele que surge o Regime de Metas de Inflação, e se construiu um conjunto de premissas que dão o desenho institucional do tripé macroeconômico e várias concepções das regras fiscais ao redor do mundo. Um de muitos exemplos foi o “Tratado de Maastricht”, na Zona do Euro, mas regras como a lei de responsabilidade fiscal, o Teto de gastos do Temer e agora o Novo Arcabouço. A despeito de variações em sua estrutura, tais regras visam o controle da despesa pública, a fim de um “equilíbrio das contas públicas” e a não “explosão” da dívida pública, no paradigma do “Estado familiar”.

Essa estrutura lógica, do Novo Consenso Macroeconômico, parte de uma raiz epistemológica e uma forma de se questionar sobre a dinâmica de acumulação e crescimento, com algumas características, como a seguir:

I) A existência da neutralidade monetária, ou seja, a política monetária não traz alterações na trajetória de crescimento do “Produto Natural” ou do PIB potencial, sendo ele determinado pelo lado da oferta;

II) O fato de que a política fiscal deve estar subordinada a política monetária, pois ela seria mais eficiente no alcance do nível do “produto natural ou potencial”. Sendo esse um dos elementos de defesa da “autonomia” do Banco Central, com um corpo técnico (que tenha visão, tal qual do Novo Consenso, claro);

III) O nível de atividade é determinado pelo lado da oferta e as reformas devem cumprir relações que deem maior grau de flexibilidade e autonomia ao setor privado, a fim de aprimorar a eficiência alocativa. As recorrentes promessas que a mídia divulga explica que essas reformas trarão maior crescimento, dada a melhora da expectativa de investimento privado, como se tal investimento se comporta-se de forma autônoma, independente de variáveis da demanda;

IV) A despesa pública exerce um papel competitivo com a despesa privada, pois ela significará uma redução da despesa privada (crowding-out) e um aumento futuro dos tributos.

Em síntese, o Estado deve reduzir seu escopo de atuação direta, em particular na oferta de bens e serviços públicos em setores produtivos. O governo deve atuar apenas na oferta de determinados serviços, no geral os mais essenciais. A despesa pública e a ideia de crowding-out explicita que ela concorre com a despesa privada. É dentro dessa visão de mundo que se difunde a ideia do Estado como a gestão financeira de uma família. A dívida pública deve ser controlada, pois existiria um risco de default, mesmo a dívida denominada em sua própria moeda.

De outro lado, existe um conjunto de pensadores, que refletem o papel central do Estado, assim como o papel de sua demanda na economia, tanto no processo de desenvolvimento técnico/produtivo; quanto na oferta de bens públicos, como saúde, educação, infraestrutura etc., e com isso reestruturação da qualidade de vida da população.

Nessa leitura, a despesa pública exerce força estruturante ao crescimento, sendo um de seus determinantes mais relevantes. A despeito de diferenças relevantes, pode ser identificar tais propriedades em Keynes, Kalecki, Furtado, Kaldor, Sraffa, Garanhani, escolas de pensamento como as Finanças Funcionais, os Estruturalistas, MMT, entre vários outros.

O foco é que o desenho institucional e o núcleo das práticas macroeconômicas derivam do “Novo Consenso Macroeconômico” e não de autores que marcam a estrutura do debate da demanda efetiva, muito menos do debate da demanda efetiva de longo prazo, como citado acima. Nessa outra visão, o papel do Estado se apresenta em alguns elementos:

I ) A demanda pública tem papel estrutural no crescimento. Ao invés de concorrer com a poupança privada, o aumento da despesa pública eleva a riqueza da população. Em síntese, o aumento do investimento público amplia a riqueza privada, ao invés de retirar, pois todo passivo público é um ativo privado;

II) A partir de um projeto tecnológico, a demanda em setores chaves pode interferir na formação de um complexo de inovação e com isso trazer vários efeitos de ganhos de produtividade e inovação;

III) O aumento da demanda gera incremento da produtividade (Lei de Verdoorm). Esse aumento faz com que o empresariado aumente seu investimento e esse aumento de investimento terá efeitos no incremento da produtividade, derivados de ganhas de eficiência e escala;

IV) A oferta de bens públicos possui a característica de elevar o bem-estar e o poder de consumo da população, que não pertence ao extrato mais rico. Ou seja, tem um caráter redistributivo e eleva o poder de consumo em bens públicos.

Diante desse quadro se compreende que a política macroeconômica e o desenho institucional não pode ser tratado como um debate marginal, na verdade é uma agenda estruturante no processo de desenvolvimento técnico, produtivo. Bem como, uma agenda de oferta de bens públicos, com a educação em tempo integral, saúde de qualidade, infraestrutura, entre outros. Em síntese, a prática e o desenho da institucionalidade fiscal definirão um conjunto de relações que possibilitarão maior crescimento, menor ou, como na história recente, estagnação.

O marco da economia nacional atual é o contrassenso de um Estado nacional que “não tem dinheiro”, que se apresenta em uma agenda política/institucional derivada do “Novo Consenso Macroeconômico”, que visa o equilíbrio fiscal. E não, como nas Finanças Funcionais, uma agenda de desenvolvimento econômico, pleno emprego e oferta de bens públicos, que compreenda os limites materiais da economia – sua capacidade técnica e gargalos –, bem como sua restrição externa.

Esse núcleo marcado por um governo do “não tem dinheiro”, também permeou toda a agenda econômica dos governos da esquerda brasileira, sendo elemento estruturante de sua dinâmica de acumulação. A despeito da existência de políticas de cunho “desenvolvimentistas” ou sociais relevantes, elas se apresentaram a margem da dinâmica de acumulação nacional, não se tratando de sua relação cêntrica. Como grande parcela da esquerda vem carecendo de uma compreensão histórica, inclusive da dinâmica de acumulação, acaba que não compreende os determinantes do crescimento em seu melhor período, bem como a sua profunda crise, que ainda marca a história recente.

Com isso, não se afirma que não existam nuanças e diferenças, mesmo dentro desse núcleo histórico de acumulação marcado pelo avanço do Neoliberalismo. Existem configurações distintas, tal como, por exemplo, entre o neoliberalismo de Pinochet e Fernando Henrique Cardoso. Assim como a vida, nada se apresenta de forma dual, a realidade se dá em uma sobreposição histórica. O ponto que se destaca aqui é que o centro da dinâmica de acumulação nacional se definiu como “A Era Neoliberal do Brasil”. Essa Era tem uma de suas características, uma macroeconomia que restringe a capacidade do Estado e que crescentemente reduz suas possibilidades concretas de mudança do padrão de vida do brasileiro. A sobreposição de regras fiscais, como Regra de Ouro, Lei de responsabilidade Fiscal e a geração de superávits primários, o Teto de gastos do Temer e agora o Teto de Gastos do Lula, com bandas e a autonomia do Banco Central, se apresentam como capítulos desse marco histórico da “Era do Neoliberalismo do Brasil”.

Dessa forma, se alarga historicamente a emergência de uma nova crise, não somente econômica, mas uma crise societária do Brasil – em que já entramos. Esse processo também se apresenta por uma gênese da esquerda. A esquerda, em particular institucional, dominada pelo Partido dos Trabalhadores, PT, vem se marcando pela omissão, baixa compreensão, sem enfrentamento, despolitização e algumas vezes se esconde em interesses escusos.

Por esses motivos, é que se faz necessário a construção de uma agenda que confronte o que está dado, uma agenda que tenha como fundo teórico o resgate da demanda efetiva, em particular uma agenda que compreenda seus efeitos de longo prazo e não somente de curto prazo. Esse debate deve contemplar um processo de desenvolvimento técnico e o desenvolvimento, de um complexo de inovação, com metas; bem como uma reconfiguração da atuação estatal, que vise melhor e maior oferta de bens e serviços públicos, como cultura, cuidado com o meio ambiente, saúde e educação.

Por Thiago Machado dos Santos
Economista, pesquisador e doutorando pela UFRJ