Não há conflito, há genocídio de palestinos

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Poucos exercícios de hipocrisia são mais grotescos do que dizer que existe um conflito entre israelenses e palestinos. Não há a mínima simetria de forças envolvidas entre as partes. De um lado, há uma entidade racista com um claro programa de limpeza étnica e um poder tecnológico como poucos detém no mundo, apoiada pelas principais potências imperialistas, sobretudo os Estados Unidos. De outro, um povo que perdeu sua terra para o imperialismo britânico e há 73 anos resiste com pouca ou nenhuma tecnologia avançada. Além da assimetria militar, os rachas do pan-arabismo e a instrumentalização da religião são ferramentas do apartheid sionista para esmagar os trabalhadores palestinos.

Os últimos desdobramentos da Nakba – nome árabe para o holocausto do povo palestino – foram, como de costume, hipocritamente retratados como um conflito. Em nosso canto latino-americano, as informações chegam filtrados pela mídia pró-imperialista, cuja tática é cristalina: recortar os eventos de seu contexto. O script começa mostrando imagens do “Domo de Ferro”, o avançado aparato tecnológico dos sionistas, derrubando os mísseis (extremamente obsoletos) disparados pelos órgãos de resistência palestina. Em seguida, o conflito é supostamente “contextualizado” por algum correspondente internacional, que afirma que se trata de uma contenda religiosa de fundamento culturalista.

O que essa “contextualização” faz questão de ocultar é que a retaliação da resistência nacionalista palestina contra a entidade genocída que ocupa seu território se deu por conta do avançado processo de expulsão de famílias de trabalhadores palestinos de suas casas em meio a pandemia. Dados da Our World in Data apontam que somente 0,9% dos trabalhadores palestinos receberam a primeira dose da vacina.

Enquanto isso, os israelenses ostentam quase 60% da população vacinada. Essa discrepância fica ainda mais gritante quando se considera que o governo sionista pode jogar fora centenas de milhares de doses da AstraZeneca, como foi noticiado pelo próprio Times of Israel. Reproduzindo a típica ideologia racista que impera na entidade sionista, o mesmo veículo afima que o “nepotismo” e a “corrupção endêmica” que impera nos órgãos de resistência palestino seriam obstáculos para a “doação” dessas doses. O que a mídia sionista escolha não mostrar é que o criminoso bloqueio à Faixa de Gaza – um minúsculo gueto de 365m² onde os sionistas aprisionam quase 2 milhões de pessoas – é o grande responsável pelo colapso econômico da população palestina, inviabilizando a distribuição de vacinas e obstaculizando o funcionamento do sistema de saúde dessa população.

Em meio a essa crise sanitária – potencializada por Israel – grupos de colonos sionistas se aproveitaram para expulsar ainda mais trabalhadores palestinos de suas casas. Como argumenta Yousef Alhelou para o Monitor do Oriente Médio, a recente escalada da Nakba tem como principal finalidade acobertar a ilegal tomada de imóveis no bairro de Sheikh Jarrah em Jerusalém. O bairro de maioria palestina fica numa faixa da cidade entre as partes de Jerusalém controlada pela entidade sionista depois da guerra de 1948 e outra que estava sob domínio do Reino da Jordânia. Após a Guerra dos Seis Dias em 1967, o bairro foi ocupado por Israel. Desde então, a maioria palestina que habita o bairro é constantemente acossada por sionistas que querem expulsá-los de suas casas.

Entidades pró-palestina vinham denunciando há vários dias incêndios criminosos perpetuados por colonos israelenses em suas casas em Sheikh Jarrah. Vídeos publicados nas redes sociais mostram milícias de colonos sionistas vandalizando pequenos negócios de palestinos no bairro. Como de costume, o aparato militar repressor israelense aparece atacando civis e praticando a violência a céu aberto, não só compactuando com as milícias, mas auxiliando e protegendo-as.

A escalada da Nakba ficou ainda mais intensa quando milícias israelenses insuflaram manifestações de caráter fascista para comemorar a vitória sionista na Guerra dos Seis Dias em 1967 e a ocupação da Jerusalém Oriental, onde fica Sheik Jarrah. O local escolhido era extremamente simbólico: a mesquita de Al-Aqsa, no complexo de templos mais importante de Jerusalém, um dos lugares mais sagrados do islã. Itmar Ben-Gvir conclamava os sionistas para “libertar o Monte do Templo”. Palestinos que foram ao local para protegê-lo foram duramente atacados pelo aparato repressor de Israel, que não só não fez nada contra os milicianos, como pelo contrário ajudou a reprimir os civis palestinos. Relatos da Crescente Vermelha da Palestina indicam que mais de 150 civis palestinos foram hospitalizados após a violência israelita.

Em resposta ao vandalismo na mesquita, entidades de resistência anti-imperialista em Gaza dispararam obsoletos mísseis contra alvos israelenses. A assimetria de forças entre as partes é tão gritante que o chamado “Domo de Ferro” neutralizou completamente a resposta palestina. Para piorar, relatos de violência perpetradas pelos israelenses se espalham por todo território ocupado. As mais intensas vieram do bombardeio sionista na Faixa de Gaza, mostrando prédios civis sendo demolidos por caças israelenses, sem que nenhuma força de resistência palestina fosse capaz de oferecer qualquer tipo de defesa contra superioridade militar sionista.

Além da combinação de milícias, Forças Armadas organizadas e tecnologia avançada, o imperialismo israelense ainda tem mais duas cartas importantes na manga. A primeira delas é a divisão do pan-arabismo e a quebra da solidariedade terceiro-mundista. A traição do governo egípcio nos anos 70 e a reversão do pan-arabismo ao longo dos anos 80 e 90 foram cruciais para isolar os palestinos. A tentativa de destruir a Síria por dentro, em grande medida patrocinada por Israel, também estava ligada a esse isolamento. A entidade sionista joga ainda na grande geopolítica, patrocinando governos coloniais em todo mundo na tentativa de aprofundar o insulamento diplomático dos palestinos e quebrar qualquer espécie de solidariedade terceiro-mundista, como fez no Brasil ao apoiar o governador-geral Bolsonaro.

A segunda carta na manga que Israel possui é a politização da religião e sua instrumentalização para atacar governos seculares anti-imperialistas no Oriente Médio. O apoio de Israel a milícias muçulmanas na guerra civil da Síria é conhecido e não é a primeira vez que isso acontece.

A grande mídia alimentada pela toxicidade ideológica liberal emanada a partir dos países imperialistas pratica um tipo específico de negação da realidade. Ao dizer que há um conflito entre israelenses e palestinos, ignora a completa assimetria de forças que existe. Muitas pessoas se escandalizam – e com razão – com os negacionistas da Shoah, o holocausto judaico perpetrado pela Alemanha imperialista, mas acham normal negar a Nakba, o holocausto palestino perpetrado pela Israel sionista. Não se trata de um “conflito” com base em um “choque de culturas”. É o mais puro e brutal genocídio. De nosso canto do terceiro mundo, cabe lembrar de que lados estamos e com quem devemos ser solidários. Pois assim como os israelenses fazem com os palestinos, mutatis mutandis, também somos vítimas do imperialismo estadunidense.