A morte como projeto e o ódio como política: o sonho do retorno a uma democracia frágil

A morte como projeto e o odio como politica o sonho do retorno a uma democracia fragil
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Este texto interrompeu um outro – que foi atrasado pelo que atualmente chamariam de sociedade do cansaço -, mas no seu início ele buscava falar apenas do falecimento do ex-primeiro-ministro japonês, Abe Shinzo (na ordem japonesa de escrita), ocorrido na última sexta-feira (08). A ideia era analisar o que se analisará, mas projetar algo pior como alerta: a possibilidade de ocorrência de cenas semelhantes no Brasil durante a corrida eleitoral de 2022. A vida antecipou a escrita e trouxe outra morte como resultado.

Na noite do último sábado (09), em Foz do Iguaçu (PR), o guarda municipal Marcelo de Arruda foi assassinado durante a comemoração de seu aniversário pelo bolsonarista e agenda penitenciário federal Jorge José da Rocha Guaranho. Arruda celebrava seus cinquenta anos de idade com uma festa da temática do Partido dos Trabalhadores e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Guaranho (que não era convidado da festa) invadiu o local (privado) fazendo apologia ao atual ocupante do cargo máximo do Executivo Federal. Ao ser expulso da festa, Guaranho retornou armado e disparou contra Arruda, que revidou. Arruda faleceu no local e Guaranho, segundo as últimas notícias, está em estado estável no hospital [1].

A morte que inspirou originalmente este texto (também por arma de fogo) ocorreu durante ato de campanha eleitoral [2] feito pelo ex-primeiro-ministro japonês, Abe Shinzo, em prol do atual primeiro-ministro. A notícia chocou o mundo inteiro por se tratar de uma figura política proeminente e de recente atuação (sua renúncia ocorreu em agosto de 2020 [3]). O maior espanto no Japão deu-se por motivos adicionais – no país há forte controle e proibição de armamentos (teria sido utilizada uma arma artesanal); desde 2007 não havia um atentado semelhante (com resultado fatal) a um político; desde antes da Segunda Grande Guerra (quando não havia o mesmo controle sobre armamentos) não havia um assassinato de um primeiro-ministro.

O suspeito de assassinar Abe (que servira ao exército de seu país até 2005) foi preso no mesmo momento e teria confessado o crime. Apesar de negar relação do assassinato com as políticas do ex-primeiro-ministro, o contexto e a pessoa atingida fatalmente levam a concluir por um viés político do assassino.

Um terceiro evento – que se fosse efetivo teria sido ainda mais grave pelo número de pessoas – foi quase esquecido pela mídia. No mesmo dia em que Arruda foi assassinado em Foz do Iguaçu, houve um ato público de pré-campanha do Partido dos Trabalhadores no Rio de Janeiro. O evento, feito na Cinelândia, contaria com a presença do ex-presidente Lula e foi marcado por um atentado perpetrado com uma bomba caseira como arma [4]. O artefato foi estourado, mas não foi informada a ocorrência de vítimas. O suspeito, André Stefano Dimitriu Alves de Brito, foi preso em flagrante e, após a audiência de custódia, foi decida por sua prisão preventiva.

Todos os casos demonstram uma elevação da intolerância política (no Brasil e no mundo). O fato de ambos os casos brasileiros terem ocorrido contra apoiadores do Partido dos Trabalhadores é diretamente relacionado a essa intolerância. Não é possível não lembrar diretamente do ataque sofrido pela caravana do ex-presidente Lula em 2018 [5] em Quedas do Iguaçu (novamente no Paraná).

O PT é hoje (e era em 2018 até a prisão do ex-presidente e candidato Lula) o único partido que, segundo as pesquisas, mostrava capacidade de vitória eleitoral à esquerda (ou qualquer coisa que se alcunhe desta forma). O partido será o alvo mais claro de um campo político radicalizado em sua origem e que propaga o ódio em seu discurso: a extrema direita, ou direita antidemocrática. A conivência da mídia é (e foi durante os últimos anos) espantosa quanto a isso.

A empáfia do ocupante sequestrador do cargo de Chefe do Executivo federal, representante maior desse campo político, seria inacreditável se ele não fosse ator de atrocidades piores. A mesma pessoa que afirma pesar pela morte de Abe Shinzo foi a pessoa que negligenciou a saúde do país, causando mais de 600 mil mortes, e demonstrou indiferença a tais mortes. Não se trata apenas de indiferença, mas de repulsa que não poderia ser demonstrada pelo cargo que ocupa (e porque, desde 2019, está em campanha para 2022).

Entretanto, a morte (de um ou de milhares), mesmo parecendo desprezada, torna-se uma arma política na mão de qualquer governo. As mortes da Chacina do Jacarezinho [6] foram realizadas por uma polícia que não teria nem mesmo justificativa para estar no local. A motivação de que os assassinados seriam todos criminosos ainda não se mostrou real e, mesmo assim, foi utilizada pela mesma polícia razão para derrubar o memorial feito por movimentos sociais [7].

Igualmente, um memorial feito pacificamente (e que certamente seria retirado em certo momento) para as vítimas da COVID-19 no Rio de Janeiro foi atacada por um manifestante pró governo federal [8] ainda em junho de 2020. Naquele momento, o país já contava com mais de 40 mil vítimas fatais da doença. Entretanto, por apoio ao ocupante da cadeira de chefe do executivo federal brasileiro (que, desde 2019, há certeza que se deveria escrever com letras minúsculas) as cruzes na areia foram derrubadas.

Como afirma o filósofo e jurista Silvio de Almeida [9], a morte deve ser ritualizada e lembrada. Os memoriais fazem, justamente, esse papel. A destruição dos memoriais são, portanto, uma tentativa guiada de uma política de ódio. A destruição dos memoriais causam uma segunda morte, ao mesmo tempo que tentam controlar a narrativa sobre o contexto passado e atual (como mostrado pela polícia civil que afirmou fatos provavelmente inverídicos em sua nota de justificativa para a derrubada do memorial às vítimas da Chacina do Jacarezinho).

Por mais que o representante deste campo político tente culpar ou culpabilizar a esquerda por atitudes violentas, a imensa maioria dos atos de violência política, se não todos, foram praticados, incitados ou iniciados pelos seus apoiadores. Afirma-se, aqui, apoiadores também para a categoria de policiais que é um dos setores de apoio mais contundente e ininterrupto [10], independentemente do que ocorra no campo político, econômico ou social. Tudo isso é resultado do pensamento irascível da extrema-direita e dos que são coniventes ao aceitarem (e alardearem) os discursos de ódio de seu representante brasileiro.

Não é possível que deixem esquecer, nem tampouco que deixem de relacionar diretamente o assassinato em Foz do Iguaçu e o atentado no Rio de Janeiro (e tantos outros que virão, naquela que se mostra a mais violenta das disputas políticas dos últimos anos, durante a campanha eleitoral de 2022), em 1º de setembro de 2018, o representante da extrema-direita no Brasil afirmou “Vamos fuzilar a petralhada” [11]. A arma na mão (em todos os seus sentidos possíveis) é o símbolo desta política. A morte está no projeto político e o ódio é o seu discurso; e é através do ódio como política que se está sucumbindo a democracia liberal.

É necessário que os coniventes parem de igualar campos políticos que não se equivalem (e jamais se igualaram). A suposta “teoria da ferradura” não passa de uma equivalência torta de quem desconhece (ou finge que desconhece) a esquerda como política e como teoria. Com isso, se propaga o medo contra a esquerda (ou como se diz no Brasil o “fantasma do comunismo“) e faz surgir figuras políticas que legitimam a morte e se sustentam através do ódio. O fuzilamento já começou e a “petralhada” é o alvo deste momento, mas é somente o primeiro de uma série outros possíveis alvos. Não é possível comparar “inimigos” com “adversários”; não é estranho que um governo ausente (e que busca culpar terceiros para gerar inimigos e continuar seguindo usando a máquina pública para benefício próprio e de seus apoiadores) não demonstre nenhuma empatia pela família da vítima de seu ódio, mas queira culpabilizar um campo político que é o seu oposto (entre a dualidade morte-vida).

Foi esse projeto de morte que nos levou a vereadora carioca e defensora dos direitos humanos, Marielle Franco, e o mestre Moa do Katendê em março e outubro de 2018. A segunda morte muito semelhante à deste sábado – um apoiador do atual chefe do executivo federal, então candidato, defendendo esses ideais, discutiu, foi‑se e voltou armado (desta vez com um facão) para ferir de morte alguém com ideais completamente distintos. Ambos os gestos são, sobretudo, covarde.

É preciso destacar: a morte por arma de fogo do dia 09 de julho de 2022 foi causada por um agente público supostamente capacidade (técnica e psicologicamente) para o porte de arma. Ainda assim, o resultado esse porte de arma foi uma tragédia – não evitada pelo porte de arma (também autorizado) da vítima. Não é possível defender a liberalização ampla que esse governo ausente e sequestrador defende, esperando que o resultado seja diferente do que se teve agora. A morte é resultado desse efetivo projeto. O Brasil com armas é um faroeste.

A superação que, se busca em 2022, contra esse projeto, a curto prazo, deve ser construída com a certeza de não será fácil nem rápido. É dever de todos que prezam pelo mínimo de civilidade (contra a barbárie) eleger algum projeto distinto. Entretanto, o que parece se buscar como superação desse projeto de morte é, a longo prazo, frágil e ineficaz. Não basta retornar à democracia liberal aos seus moldes pré 2019 (ou pré 2016). É necessário buscar construir algo mais sólido, amplo, inclusivo, participativo e representativo.

A democracia liberal mostrou-se frágil no Brasil, nos poucos momentos em que existiu. Mesmo assim essa fragilidade gerou transformações positivas que não podem ser desprezadas. E é por essas transformações que deve ser buscado algo maior, uma democracia verdadeira e que se traduza em um projeto de vidas (antagônico ao projeto atual). Se não for almejada e houver uma real tentativa dessa construção, a fragilidade da democracia que se tenta retomar (ainda que 2022 dê certo) possibilitará o retorno da morte através do ódio.

 

[1] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/guarda-municipal-e-morto-em-foz-do-iguacu-durante-festa-de-aniversario-com-tema-sobre-o-pt/

[2] https://www.dw.com/pt-br/ex-premi%C3%AA-japon%C3%AAs-shinzo-abe-%C3%A9-assassinado/a-62405303

[3] https://www.dw.com/pt-br/abe-renuncia-ao-governo-japon%C3%AAs-por-problema-de-sa%C3%BAde/a-54726404

[4] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/homem-tem-prisao-preventiva-por-jogar-explosivo-contra-publico-em-ato-com-lula/

[5] https://g1.globo.com/pr/oeste-sudoeste/noticia/onibus-da-caravana-de-lula-sao-atingidos-por-tiros-no-oeste-do-parana-diz-assessoria.ghtml

[6] https://www.dw.com/pt-br/o-que-j%C3%A1-se-sabe-sobre-o-massacre-do-jacarezinho/a-57498522

[7] https://www.dw.com/pt-br/destrui%C3%A7%C3%A3o-de-memorial-no-jacarezinho-causa-indigna%C3%A7%C3%A3o/a-61772782

[8] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/06/11/grupo-ataca-manifestacao-que-lembra-mortos-pela-covid-19-no-rio.ghtml

[9] https://open.spotify.com/episode/3NyJivTXFlR8Sv1qKCHY8b?si=ZYDpgy1CRPW9nwcOMwHxmQ&context=spotify%3Ashow%3A4gkKyFdZzkv1eDnlTVrguk

[10] https://sindpfsp.org.br/2021/04/11/na-reportagem-o-que-as-policias-acham-de-bolsonaro-representantes-da-upb-se-manifestam/

[11] https://www.poder360.com.br/eleicoes/no-acre-bolsonaro-fala-em-fuzilar-a-petralhada-e-envia-los-a-venezuela/