Um sofisticado processo de aprimoramento tecnológico na máquina pública vem acontecendo simultaneamente a uma perversa regressão da trajetória do que se pode chamar de modernização do Estado brasileiro – processo esse não por acaso imbricado nas complicadas mudanças que vêm ocorrendo no mundo a partir de meados do século passado. É o que eu chamaria de contraste entre artefatos de utilização e pensamento estratégico, vale dizer, entre instrumentalização técnica e sabedoria política.
É nessa tendência que o chamado “gerencialismo público” vem marcando e conformando corações e mentes de funcionários públicos brasileiros há pelo menos três décadas. Trata-se de fenômeno com raízes teóricas no New Public Management e na Public Choice, dentre outras visões que levam a tiracolo o individualismo metodológico das explicações sobre administração, economia, política e direito.
É uma salada com temperos aparentemente sofisticados e encantadores para os adeptos da novidade supostamente eficiente, misturando o velho complexo de vira-latas à boa fé ingênua em relação a crenças que sinalizam o Estado sempre como potencial de problemas e o Mercado, como fonte de soluções. E pior: a assunção de teorias oriundas em países do Norte onde elas já se tornaram ultrapassadas, aliás, como aconteceu, só para citar um exemplo famoso, quando o PSDB nasceu em 1988 com a bandeira de uma social democracia já decadente em países europeus.
Em linhas bem resumidas, o “gerencialismo público”se caracteriza, dentre outros aspectos, pela ideia de que o Estado deve adotar princípios e procedimentos da iniciativa privada para ser mais econômico, eficiente, efetivo e eficaz na prestação de serviços aos chamados cidadãos “clientes”.
Daí uma série de disposições relacionadas à contenção de gastos, enxugamento da folha de pagamentos, auditorias constantes, descentralização, responsabilidade fiscal (mas não social), demissões voluntárias etc. – tudo isso num contexto contraditório, caracterizado pela crescente sofisticação de tecnologias de controle e planejamento em contraste com a diminuição da capacidade de pensamento criativo e holístico para o desenvolvimento do país.
Além do complexo de vira–latas em relação a países ditos mais “desenvolvidos”, haveria nessas disposições o mesmo complexo no nível doméstico, obviamente interpenetrado ao outro, que é a noção de que tudo no mercado é mais eficiente. Empresas privadas seriam exemplos de competência e superioridade em contraponto à administração estatal. Como se, por uma característica natural e imanente, a máquina pública sempre fosse inepta para resolver os problemas da sociedade.
Quando se fala em modernização, vem logo no imaginário do senso comum o fetiche das tecnologias, o plágio de procedimentos, o Deus-Mercado, as agências de risco, auditorias independentes, nuvens de dados, algoritmos para fiscalizações em tempo real e outros processos biônicos impensáveis no tempo da máquina de escrever.
Na realidade, a máquina hoje é outra. Possui seus artefatos concretos evidentes, mas, no geral, torna-se invisível, perpassando quadrantes estratégicos da administração pública voltadas para o mercado. Mais precisamente, uma máquina que faz o mercado capturar o Estado e, salve-se quem puder, fazendo prevalecer interesses particularistas das forças hegemônicas que consigam manipular a administração pública.
É certo que nem toda a máquina pública é aquinhoada com a modernização tecnológica, cujos ganhos e proeminências ficam por conta de bolsões estratégicos e privilegiados da administração estatal, em termos de recursos de infraestrutura, salários e gratificações. Situação que confere aos funcionários desses setores uma primazia e um status de mais qualificados que outros etc.,alguns podendo ser caracterizados como a meritocracia da meritocracia, elites dispersas aqui e ali, “antenadas” com o mercado. Isso, a ponto – numa situação de oximoro –, de ser disseminada a ideia entre os próprios funcionários públicos sobre a necessidade do enxugamento da máquina.
Resumindo essa reflexão, que pode ser, na verdade, apenas mais um entre diferentes inícios de abordagens diversas sobre o tema – objeto de uma miríade de trabalhos e pesquisas da teoria política contemporânea e que nunca se esgotam, ainda bem: modernização deveria implicar, na verdade, dentre outros aspectos, não somente o desenvolvimento do aparato computacional, que, aliás, contraditoriamente e, em muitas situações, propositadamente, pode trazer o reverso do desenvolvimento, a partir de mais controles exógenos sobre os problemas da comunidade.
Evidente que precisamos de tecnologias sofisticadas. Porém, mais do que isso. Não podemos abrir mão é de uma modernização eminentemente política, isto é, um conjunto de ações e mecanismos que promovam constantemente o debate político inseparável das questões administrativas, a experimentação de ações cotidianas do aparato estatal, a reiteração das diferenças epistemológicas entre as especificidades do fenômeno da administração pública e o Estado, este compreendido como um feixe de relações e conflitos, e não simplesmente como entidade neutra, acima da sociedade, pretensamente representante, apenas com sua meritocracia, de todas as partes da chamada sociedade civil.
Modernização essa que neutralize o desapareço pela política no âmbito da burocracia, setor estratégico no processo de políticas públicas, mas não representante da sociedade. Que implique o reconhecimento do conflito entre diferentes partes e que não separe política de administração, nem ética da experiência concreta, já que esta, no caso dos funcionários públicos, só pode, ou deveria, estar voltada para os interesses da coletividade, e não de nichos corporativistas com existência garantida por concurso público.