Maria da Conceição Tavares é trending topics: a redescoberta da professora pela internet

Maria da Conceição Tavares é trending topics: a redescoberta da professora pela internet
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Uma inusitada febre tem tomado as redes sociais nas últimas semanas. Vídeos com recortes de antigas aulas de economia da professora Maria da Conceição Tavares estão viralizando na internet e se espalhando pelas diversas redes.

Esse abaixo, em 6 dias de postagem, teve mais de 1 milhão e 200 mil visualizações no Twitter, onde o nome da professora frequentemente tem aparecido nos trending topics:

Esse outro, no TikTok, uma rede na qual seus vídeos também estão se espalhando com velocidade, já caminha para 250 mil visualizações em 24 horas:

@acervotavares nunca tive o privilégio NEM QUERO de pisar na Alemanha #mariadaconceiçãotavares ♬ som original – acervo MCT

Por um lado, a retórica iconoclasta e o acentuado sotaque português, aliado a seu inseparável cigarro, parecem estar chamando a atenção de jovens que não conheceram a época em que tabagismo não era uma questão. Por outro, o discurso da professora, que por décadas denunciou com veemência os efeitos do subdesenvolvimento e da dependência do país, deve estar reverberando fundo numa juventude cercada desde o nascimento por uma crise contínua e crescente, que passa a compreender melhor suas tragédias ao se deparar com esse vídeo abaixo, direto do “Acervo Maria da Conceição Tavares“:

No período da hiperinflação, sua verve já havia a projetado para além dos muros da universidade, inclusive inspirando uma personagem nos programas de Chico Anysio, interpretada pela humorista Nádia Maria, batizada de Maria da Recessão Colares:

Fugitiva da ditadura salazarista, a economista de larga trajetória e impacto no desenvolvimento da ciência brasileira se radicou no país em 1954, atuando em várias esferas acadêmicas e de governo. No período da redemocratização, se filou ao PMDB, ficando no partido durante toda a década de 80. Saiu em 1989 e ingressou no PT, em 1994, onde continua filiada.

A ilustre desenvolvimentista, professora-titular da UNICAMP e professora-emérita da UFRJ, é uma figura que dispensa muitas apresentações, porém, nessa sua ‘redescoberta’ pelos jovens, é natural que sua biografia – e seus embates – também seja objeto de curiosidade.

Revendo seus vídeos, me veio à mente um período em que o PT não era esse sólido monolito neoliberal, rendido ao caminho único da dependência negociada do CEBRAP. Até a chegada ao governo e a consolidação das alianças que sustentaram o projeto lulista, o Partido dos Trabalhadores convivia com vozes dissonantes em seu interior, que moviam importantes debates públicos.

Dentre as polêmicas manifestações da professora Tavares desse período, uma em especial merece ser redescoberta: a entrevista dada à Folha de São Paulo, em abril de 2003, logo no início do governo Lula. Revoltada com os caminhos anunciados pela equipe econômica, Maria da Conceição Tavares deu essa icônica entrevista, que reproduzimos a seguir, na qual ela chama de ‘débil mental’ o secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Marcos Lisboa, e bate na proposta do ministro Antonio Palocci de ‘focalização dos programas sociais’.

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A entrevista que segue foi concedida à jornalista Gabriela Athia e publicada em 21 de abril de 2003 na Folha de São Paulo:

“Depois que o ministro Antonio Palocci Filho (Fazenda) divulgou, no último dia 10, o documento “Política Econômica e Reformas Estruturais”, a economista Maria da Conceição Tavares, 73, perdeu a calma e mandou às favas o tom moderado que vinha usando diante da imprensa. “Quase tive um ataque quando li aquilo.”
“Aquilo” é o documento em que a equipe econômica, contradizendo argumentos históricos do PT, atribuiu os problemas da economia brasileira à falta de ajuste fiscal. A sigla sempre bateu na tecla de que o déficit externo era a causa das mazelas do país.
Mas o que fez com que a economista, avessa a entrevistas, falasse à Folha foi o fato de o documento propor a focalização dos programas sociais -pela qual somente os realmente pobres seriam atendidos. Embora a expressão tenha sido usada de forma genérica, para Tavares, assessores de Palocci tentam introduzir no governo a idéia de acabar com a universalização dos benefícios sociais.
Antes que a discussão começasse, ela resolveu colocar a boca no trombone. Em uma entrevista concedida na última sexta-feira, por telefone, chamou o secretário de Política Econômica, Marcos Lisboa, que ajudou a elaborar o documento, de “débil mental” e disse que numa reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social foram apresentadas estatísticas falsificadas. A seguir, trechos da entrevista.

Folha – Por que o documento divulgado no último dia 10 pela equipe do ministro Palocci causou mal-estar entre os ministros da área social ao falar na focalização dos programas sociais?
Maria da Conceição Tavares – Causou mal estar em todo mundo. Não sou da área social e estou histérica. Temos políticas universais há mais de 30 anos. Somos o único país da América Latina que tem políticas universais. A focalização foi experimentada e empurrada pelo Banco Mundial na goela de todos os países e deu uma cagada. Não funciona nada. Desmontaram o sistema de saúde pública do Chile, que era o melhor da América Latina, desmontaram a Previdência e fizeram fundos de pensão e deu outra cagada, desmontaram o sistema de ensino público e foi a mesma coisa.
Ainda fizeram a mesma coisa na Argentina. Chile e Argentina tinham historicamente os melhores programas de saúde e de educação e cobertura geral de políticas universais. Desmantelaram e obrigaram a fazer focalização.

Folha – Causa surpresa saber que num governo de esquerda há eco para esse tipo de proposta…
Tavares – O eco foi de raiva. Dentro do programa [divulgado pelo Ministério da Fazenda] há gente infiltrada que escreveu uma porcaria chamada Agenda Perdida [documento escrito pelos economista José Alexandre Scheinkman, Ricardo Paes de Barros e Marcos Lisboa], feita por um grupo de débeis mentais do Rio de Janeiro. Não são tão débeis mentais porque, além de fazer a Agenda, montaram um instituto, que é uma ONG, que recebe em torno de US$ 250 mil do Banco Mundial para fazer o tal estudo especial para focalizar.
Assim como tivemos a desgraça de, no governo Fernando Henrique Cardoso, termos os economistas da PUC [Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro] no programa econômico, desta vez temos também os da Fundação Getúlio Vargas, e não apenas infiltrados na área econômica. Esse Marcos Lisboa é um garoto semi-analfabeto que está encarregado de fazer política econômica, coisa que ele jamais fez na vida. Quiseram vender a Agenda para o PMDB, que não comprou, fizeram o mesmo com o Ciro [Gomes, candidato derrotado pelo PPS à Presidência e hoje ministro da Integração Nacional].
É um espanto que esse grupo de garotos espertos faça com dinheiro público e do Banco Mundial uma nova Agenda que proponha para o Brasil -o único país que tem políticas universais em saúde, no ensino público básico e no INSS, três redes universais que nunca ninguém conseguiu desmontar- a focalização dos programas sociais.

Folha – Apesar das críticas ao Marcos Lisboa, a política econômica do governo está sendo bem-sucedida…
Tavares – O Marcos Lisboa tem 38 anos e foi colega do meu filho na escola. Foi meu aluno, era um bom menino que adorava fazer modelos matemáticos e adora até hoje. Isso tem tanto a ver com política social quanto coisa nenhuma. É um direito do ministro levar quem quiser para a sua assessoria econômica, mas não é direito de um assessor palpitar sobre focalização e Agenda Perdida.

Folha – A sra. acredita que esse documento tenha sido feito à revelia do ministro Palocci?
Tavares – Eu não acho nada. Sei que quem escreveu o documento foi ele. O ministro Palocci escolheu para seu assessor econômico e do Tesouro [Joaquim Levy, ex-chefe da assessoria econômica do Ministério do Planejamento no governo FHC] quem bem entendeu. Não são pessoas da confiança do PT e não têm nada a ver com o partido. É gente de quem ninguém nunca tinha ouvido falar. O Marcos Lisboa não tem a menor experiência de política econômica. Já o ministro é um cara inteligente e tem experiência. Então pensei: ele colocou lá uns papalvos [patetas” sem importância nenhuma porque é esperto e não vai ouvir conversa nenhuma. Além disso, o ministro Palocci conversa com diversos economistas: do Delfim [Netto, deputado pelo PP -antigo PPB- de São Paulo e ex-ministro da Fazenda] aos tucanos e a nós. O ministro Palocci fala com todo mundo.

Folha – Defender a focalização dos programas sociais é ser liberal?
Tavares – Estive em São Paulo [depois da divulgação do documento” e tive de ouvir o dr. Delfim Netto defender a Constituinte de 1988, onde estão consagrados os direitos universais nas três áreas: saúde, assistência social e Previdência Social. Isso vinha sendo construído como políticas universais desde o tempo da ditadura, logo, não é um problema de ser conservador. É um problema de ser pateta ou de má-fé. E esse pessoal está tentando dar as rédeas da política social do governo.
É evidente que os ministros da área social estão possessos, mas não vão armar uma briga com o ministro Palocci, a quem terei o prazer de, assim que for a Brasília, ir visitar para perguntar o que é aquilo. Como um documento da Fazenda fala sobre focalização?

Folha – Há algum outro aspecto que a sra. critica no documento?
Tavares – Ele desmente o diagnóstico de todos os economistas bons desse país que colocaram no estrangulamento externo, no aumento dos passivos externos que o doutor Fernando Henrique nos deixou, os problemas da economia. Diz que não é nada disso e que o problema na verdade é que o governo passado não fez o ajuste fiscal, que tal? Um garoto falando contra o ponto de vista de todos os grandes empresários e economistas como Delfim Netto, [Luiz Carlos] Mendonça de Barros, do José Serra, do Luiz Carlos Bresser Pereira, do Yoshiaki Nakano, de Campinas inteiro… Se há unanimidade no diagnóstico econômico é que temos um problema de estrangulamento externo. É isso que nos faz tolerar a habilidade política do ministro Palocci em contornar uma situação que, em setembro, era ruinosa.

Folha – Apesar do que a senhora fala de Marcos Lisboa, a taxa de câmbio recuou, a inflação dá sinais de queda…
Tavares – O garoto não faz política econômica. Quem faz é o ministro, o presidente do Banco Central, a diretoria do BC e aquele garoto do Tesouro [Joaquim Levy], e não aquele menino [Lisboa], que não tem a menor condição de fazer política econômica por não ter experiência. O que ele faz são os documentos, aquela babaquice que o Consenso de Washington quer que a gente aplique.
Ele que faça os documentos que quiser. Diga-se de passagem que o diagnóstico [contido no documento “Política Econômica e Reformas Estruturais”] é a gargalhada do Delfim e de todo mundo porque revela a mais profunda ignorância…

Folha – A política econômica do ministro Palocci está correta?
Tavares – Até aqui, sim. Agora vai complicar por causa do câmbio.

Folha – O câmbio deve ser controlado?
Tavares – Não acho nada. Se nem o presidente do FED [banco central norte-americano], Alan Greenspan, sabe o que fazer com a taxa de câmbio dele, como, diabo, você quer que eu diga o que vai acontecer com o câmbio? Acho apenas que deixar entrar capital morte súbita [especulativo e de curto prazo], como diz o Delfim, ou capital pirata, os US$ 5 bilhões, ajuda a revalorizar. Mas depois teremos outro ataque, que foi o que aconteceu no governo Fernando Henrique. Nesse sentido, essa política econômica é a mesma que a anterior e não deu bom resultado. Política cambial é a coisa mais difícil porque o BC, não tendo reservas, não tem raio de manobra para fazer política cambial. Logo, eu não estou criticando. Apenas digo que, se essa política durar muito, como diz o próprio presidente Lula, é ruim porque prejudica a retomada do crescimento, a substituição de importações, as exportações. Não tenho atacado nem o ministro Palocci nem o presidente do BC. Agora, os débeis mentais que ele tem de assessor, se não escrevessem nada ou ficassem calados, eu também não atacaria.

Folha – Há pontos corretos no documento: até hoje não reduzimos a desigualdade de renda, e nossos programas sociais não combateram a pobreza.
Tavares – Não é verdade. A Previdência e a Loas [Lei Orgânica de Assistência Social, que prevê o pagamento de aposentadoria a deficientes e para idosos com mais de 65 anos com renda per capita da família até R$ 25] são os maiores programas de transferência de renda da América Latina. Move não apenas a economia das pequenas cidades do Nordeste, como as de São Paulo e as do Rio de Janeiro.

Folha – Isso não muda o fato de que hoje o Brasil investe mais nos velhos do que nas crianças.
Tavares – Isso é porque o programa de leite e de nutrição do SUS foi abandonado pelo governo Fernando Henrique.

Folha – Não há programa de leite que faça com que um menino que nasceu na periferia de São Paulo quebre o ciclo de pobreza da sua família…
Tavares – A redução da mortalidade infantil deve-se à distribuição de leite do governo José Sarney. Gozado: cai a mortalidade, aumenta a alfabetização, os velhos recebem renda e não está funcionando? As estatísticas sociais apresentadas no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social foram falsificadas. São essas coisas que fazem com que a sociedade diga, há uma década, que o serviço público não funciona, que o Estado é ineficiente e que tem de focalizar.
Estou discutindo a universalização dos indicadores sociais. Para melhorar a distribuição de renda vai ser preciso fazer tudo: uma reforma tributária progressista, reforma agrária, que os donos de banco paguem imposto etc, etc.”