Mais que tudo: 76, 79 ou 82 anos de Jorge Ben Jor

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O Copacabana Palace fechou as portas por causa da pandemia. Foi a primeira vez em 98 anos de história. Nenhum hóspede circula pelos corredores, exceto ele, Jorge Duílio Lima Meneses, que mora lá desde 2018 e hoje faz aniversário.

Há certa divergência sobre a idade de Jorge Ben. Uns dizem que ele nasceu em 1939, outros em 1942, e ele próprio defende que nasceu em 1945. Sobre o dia, felizmente, não há controvérsias. Vale comemorar, então, neste 22 de março, seus 76, 79 ou 82 anos.

Salve, Jorge, o misturador de tudo com tudo. Jorge Ben criou um esquema novo para o samba. O avesso do avesso da bossa nova, que traz consigo a mensagem fundamental do samba: o coração tem e não tem cor. Jorge encara o samba como um projeto estético e cria algo original, inédito e sem precedentes. Faz uma argamassa de samba, rock e blues, que junta o batuque africano tropicalizado brasileiro à tradição lírica dos escravos das plantações de algodão no delta do Mississipi. Dá vazão a uma estética avançada e avassaladora, que significa a superação contínua dos limites estéticos da canção e das artes de maneira geral. Basta olhar a capa do antológico disco Jorge Ben (1969): um imenso sol com uma pomba branca ao centro funciona como fundo que irradia feixes de luzes amarelas e vermelhas latentes, em um cenário composto por bananeiras, cajueiros, pequenas nuvens, pandeiros, homens em roda samba, mulheres guerreiras do futuro, sombras, mulheres nuas, arquibancada e torcedores, um tucano, bandeiras do Brasil e do Flamengo; em meio a tudo isso, um Jorge Ben em preto e branco, plácido, sereno, com correntes quebradas e um violão perto do coração, como quem, tranquilo e infalível, sabe a que vem.

Álbum Jorge Ben (1969)

Salve, Jorge, o imperador do ritmo. Do sacodin-sacoden herdeiro de João Gilberto. A música introvertida do baiano encontra seu discípulo perfeito no extrovertido carioca. Jorge Ben compreendeu perfeitamente o impacto da obra de João Gilberto: libertou o violão para criações as mais variadas possíveis, como máquina rítmica que realça, a todo momento, o lado percussivo da canção. Nada de ficar, portanto, bitolado girando eternamente em torno de Chega de saudade ou Garota de Ipanema.

Salve, Jorge, nosso irmão de cor. Jorge Ben Jor é o primeiro artista moderno a dar à negritude um sentido poético e profético enquanto forma de fazer música.

Ao longo de décadas de produção artística, Jorge criou um arco de personagens que afirma a existência de um nacionalismo negro como parte constitutiva da cultura brasileira. Os exemplos são inúmeros.

A Criola, tomada como “uma linda dama negra”, “rainha do samba”, que se tornou uma fiel representante do samba brasileiro e expressão do “poder negro da beleza”.

O Brother Charles, o irmão de cor de Ben. A canção pede calma ao irmão que está quase perdendo a cabeça e a fé. Ben, então, aponta avanços palpáveis e o futuro melhor que a ciência e a técnica (“Depois que o primeiro homem / Maravilhosamente pisou na lua”) podem criar. Tenta aumentar a moral do irmão de cor, cantando a fantasia, o amor, a alegria, a fé, a paz e a sugestão.

O Charles Jr., cidadão que nasceu do ventre livre no século XX. O desafio proposto por Jorge é superar a condição histórica dos descendentes de escravos: “Só quero viver em paz / E ser tratado de igual para igual”. O homem que nasceu formalmente livre no século XX quer “amor e fé” no século XXI, em que as “conquistas científicas, espaciais, medicinais” serão as armas da vitória de um negro chamado Charles Jr., que é também um anjo (“E o mundo todo vai ouvir / E o Mundo todo vai saber / Que eu me chamo Charles Junior”).

O Cassius Marcellus Clay, mais conhecido como Muhammad Ali, o lutador mais importante do mundo à sua época. Pintado como herói épico e libertador. Na canção, Ben transpõe o inglês ao português com naturalidade. A dinâmica dos rápidos movimentos do herói negro é dada pelo violão freneticamente vivo e pela comparação com elementos tipicamente nacionais (“a cadência de uma escola de samba e o 4-3-4 de um time de futebol”). Cria-se, assim, uma referência cultural única tanto para os estadunidenses, como para os brasileiros.

A Xica da Silva. A escrava Francisca da Silva de Oliveira se tornou a amante e “mulher do fidalgo tratador João Fernandes”, e era, a um só tempo, “muito rica e invejada”, recebida como uma grande senhora da corte do Rei Luis.

O Zumbi. De uma vez, Jorge Ben juntou todas as matrizes africanas que formaram o Brasil (Angola, Congo, Benguela, Monjolo, Cabinda, Mina, Quiloa, Rebolo), a escravidão, a nobreza africana com seus súditos e carros de boi. E o herói capaz de mudar o destino do povo brasileiro: Zumbi dos Palmares.

Fica claro nessas canções que o lugar do negro é diferente daquele que a tradição indicava à época. Jorge Ben Jor foi o primeiro compositor moderno brasileiro a tratar o negro com nitidez e dignidade, antecipando até mesmo o que o rap viria a ser depois. Quem falava de “preto velho” e “preto tutu” em 1959 senão ele? Orgulhoso da África, cria uma imagem literária da herança negra. Silvia lenheira, em homenagem à sua mãe, descreve com perfeição esse ambiente: a cozinha de ladrilhos portugueses azuis, o forno e fogão a lenha, as panelas de cobre, o tanque, o varal e as roupas coloridas, o cão de guarda vira lata latindo, a rede, e a jaqueira criam o cenário perfeito para a “rainha da casa cor de rosa, do chão vermelho, do teto branco e das janelas muitas rosas”.

Salve, Jorge, do futebol, da ponte África-Brasil. Futebol e música se juntam em Jorge Ben a partir de um forte senso estético. O futebol é o que é para o Brasil porque possui um compromisso indissociável com a beleza do drible e com a precisão técnica. O mesmo ocorre com a música. Jorge funde os dois.

Só mesmo o ponta de lança africano que corre, chuta, abre espaço, vibra e agradece é capaz de fazer a cidade toda ficar vazia na tarde bonita “só para te ver jogar”.

Ou então a sensação inigualável de ver um golaço aos 33 minutos do segundo tempo, de um jogador que tabelou, driblou dois zagueiros e o goleiro e só não “entrou com bola e tudo porque teve humildade em gol” (“humildade em gol” deveria dar a Jorge Ben um assento na Academia Brasileira de Letras).

Salve, Jorge, da Capadócia, de São Jorge. Da religiosidade típica do Brasil, dos terreiros, da umbanda e do candomblé. Jorge da Capadócia talvez seja a canção-oração mais célebre da música popular brasileira. Apela ao santo guerreiro para impedir o inimigo de alcançar, tocar, ver e até mesmo pensar em fazer o mal para quem nele crê. Não à toa, foi ressignificada por Mano Brown.

Salve, Jorge, o alquimista dos sons. Da mesma época da sociedade alternativa e da magia negra Raul Seixas e da fase racional de Tim Maia, A Tábua de Esmeralda encarna a era libertária dos anos 1970 e se transforma num tratado sobre a alquimia, sobre a lei da transformação.

O Homem da gravata florida é uma homenagem ao alquimista Paracelso. A microdescrição de uma “gravata florida” forma o “relatório das coisas belas” que envolve completamente o macrocosmo do “homem simpático e feliz”. É a gravata quem veste o homem, e não o contrário.

José Bonifácio disse certa vez que o Brasil era a amalgamação de muitos metais heterogêneos, como brancos, mulatos, pretos livres e escravos e índios, em um só corpo sólido e político.

Essa verdadeira fusão de metais heterogêneos só poderia mesmo ser feita por um alquimista, disposto a combinar diferentes elementos e criar algo novo. Cada acorde, cada verso, cada canção de Jorge Ben revela a síntese de sua obra: a alegria de viver num país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza.

Ouvi-lo é captar uma parte real do Brasil, dessa verdadeira amálgama que nos constitui como nação.

Em momentos tão difíceis de nossa história, como a época nefasta da peste e da indiferença com o sofrimento alheio elevada à categoria de política de Estado, faz bem ao coração juntar, num balaio só, o jacarezinho, o avião, o disco voador, Tim Maia, o trem da Central do Brasil e, claro, o alerta carinhoso à família: alô, alô, Tia Léia, se tiver ventando muito não venha de helicóptero!