Morra a Lava Jato, viva o lavajatismo? Deltan, Jucá, e os movimentos da serpente morta

Foto de Deltan Dallagnol com uma projeção luminosa sobre o rosto
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Muitos animais ectotérmicos, ou seja, de sangue frio, continuam se movimentando no chão mesmo depois de terem sofrido decapitação. Deltan, o cabeça da operação Lava Jato de Curitiba, se foi, mas o lavajatismo ainda opera por espasmos neurais. Por um lado, os já surrados espetáculos de processo penal em outros quadrantes do território nacional, como se viu no ataque a escritórios de advocacia por ordem do juiz Marcelo Bretas, do Rio de Janeiro.

Ou deveríamos dizer, Ministro do Supremo Tribunal Federal Marcelo Bretas, já que obliquamente “julga” ministros do STJ? Dentre os ministros obliquamente atingidos está o Humberto Martins que quando Corregedor Nacional de Justiça determinou à Corregedoria Regional da 2ª Região a apuração da acusação do Conselho Federal da OAB de “atos de caráter político-partidário” e de “superexposição e de autopromoção” do juiz Bretas. O presidente da OAB é Felipe Santa Cruz, outro advogado que foi visitado pela polícia no mais recente espetáculo do lavajatismo carioca.

Outra interessante e visível reação espasmódica do lavajatismo é o sincronizado surgimento de uma mesma “notícia” (mais uma opinião maledicente em forma de notícia!) em diversos veículos da sempre mais opinativa que informativa grande mídia brasileira: a suposta vitória de Jucá com o fim da Lava Jato. Romero Jucá é o famoso proponente do acordão das elites políticas e empresariais para “estancar a sangria”, “com Supremo e tudo”.

A lógica do lavajatismo incrustrado na grande mídia, de onde ainda tenta botes certeiros contra quem se opõe aos seus métodos atípicos e ilegais, é representado pelo bordão “Lava Jato ou corrupção!” Com isso, pressiona as instituições através da grande mídia para curvarem-se atemorizadas diante dos justiceiros de Curitiba e seus representantes em Brasília.

Aras é a Geni da imprensa lavajatismo

O alvo desse mais recente ataque do lavajatismo midiático é Augusto Aras. O PGR é a esfinge a respeito da qual escrevemos aqui num outro momento. Um aspecto pouco retratado, mas que explica muito da má vontade da mídia, é a maneira como Aras vê o binômio liberdade de imprensa versus responsabilidade da imprensa. Ao fazer sustentação oral no Supremo Tribunal Federal em 10 de junho, quando do julgamento do inquérito das fake news, que tanto pavor causa nas frações mais radicalizadas e robóticas do esquema bolsonarista, o PGR saiu-se com essa:

“Sabemos que esse fenômeno maligno das fake news não se resume a blogueiros ou às redes sociais. Ele é estimulado por todos os segmentos da comunicação moderna, sem peias, sem aquele respeito que a minha geração aprendeu a ler o jornal, acreditando que aquilo era verdade.”

“Temos que hoje ter mais cuidado na leitura das notícias para fazermos um filtro fino para encontrar um mínimo de plausibilidade em relação a esta campanha de fake news, que não guarda limites de nenhuma natureza. E o pior, que vai estimulando comoções sociais, que vai sustentando pensamentos extremistas, que vai levando a sociedade já desesperada, em meio a uma calamidade pública, a sentimentos de revolta, incitação, e submetida a reações muito delicadas para a nossa democracia”.

Diante da ousadia de Aras de questionar o sacrossanto direito que a mídia se auto atribui de poder dizer impunemente o que quer sobre quem quer seja, verdadeira ou não a informação, a resposta veio fulminante e coordenada em todos os grandes meios de comunicação. É como se Aras houvesse cometido um grave crime e a ordem unida do partido da mídia é de fazê-lo pagar duramente.

A reação desproposital das empresas de comunicação contra a platitude de Aras igualou gregos e baianos. Mesmo alguns jornalistas tidos por mais isentos e abertos à crítica foram tomados de um flamante e irrefreável espírito de corpo. Um deles, Reinaldo Azevedo, disparou nada menos do que esta pérola: “Estaria Aras querendo um atalho no combate às fake news para tentar intimidar, também ele, a imprensa profissional, como fez Erdogan na Turquia?”

Erdogan na Turquia? Santa Periquita do Bigode Loiro!, diria o impagável Sílvio Luiz.

Já o previsível “O Globo” pronto ensinou o seu distinto público que “a fala de Aras segue o mesmo padrão adotado por Jair Bolsonaro e seus aliados, que frequentemente atacam os veículos de comunicação da imprensa profissional”. Como é mesmo? Aras colocou a PGR em apoio ao inquérito das fake news no Supremo, que é tudo o que Bolsonaro teme, mas mesmo assim “a fala de Aras segue o padrão adotado por Jair Bolsonaro”. Sério? Bem, é a Globo, né, Brizola?

A ANJ (Associação Nacional de Jornais), por seu presidente Marcelo Rech, bradou que a declaração de Aras é fruto de um “completo desconhecimento” da realidade. Brizola, Requião, Lula, Ciro e a torcida do Flamengo também padecem desse “desconhecimento”.

A presidente da Federação Nacional dos Jornalistas, Maria José Braga, que surpreendeu ao sentar praça no quartel do patronato, veio com esta maravilha conceitual: “O reino das fake news não é o jornalismo. O jornalismo, ao contrário, é o espaço de produção de qualidade.” Sim, claro, basta uma pesquisa nas capas da Veja, em qualquer tempo, para confirmar o credo da moça.

O lavajatismo é uma hidra de muitas cabeças. Uma das mais terríveis são as relações secretas da imprensa com agentes públicos que resulta na espetacularização e instrumentalização do processo penal com benefício mútuo para os vazadores e os receptadores do material ilegal. A Lava Jato não teria produzido os seus erros e horrores sem o acumpliciamento da imprensa. Diante da blitzkrieg republicana com que Augusto Aras empareda a Lava Jato os ainda azeitados canais de comunicação do lavajatismo com a imprensa são claramente operados pela oposição lavajatista ao PGR internamente e no Conselho Nacional do Ministério Público.

A oposição, segundo o PGR, seriam as viúvas do “ancien régime”. Aras diz para quem quiser ouvir que o que havia na PGR antes da sua chegada era a captura das estruturas impessoais da instituição, que foram degradadas a instrumento de interesses dos grupos que dominavam o sistema das listas tríplices da era Lula-Dilma, através das quais, à margem da Constituição, impunham ao Presidente da República (ou seja, à soberania popular) os nomes dos “eleitos” pela corporação dos procuradores, através da ANPR – Associação Nacional dos Procuradores da República. O sistema eletrônico para a escolha das listas tríplices se revelou vulnerável e manipulável em perícia da CGU e da área de perícias da própria PGR. Aras não se submeteu ao sistema e foi indicado por Bolsonaro, que preteriu os nomes apresentados pela ANPR.

Os bastiões da resistência do lavajatismo

Deltagnan se foi e a Lava Jato de Curitiba finda o seu mandato em janeiro de 2021. Com isso, o núcleo de resistência do lavajatismo no MPF desloca-se para o Rio de Janeiro, São Paulo e para os subprocuradores gerais que apoiam a operação no STJ.

Mas recente decisão do Conselho Nacional do Ministério Público, tomada por provocação de Aras, praticamente acabou com a força-tarefa da Lava Jato no STJ, cuja existência contrariava o princípio do procurador natural. Na gestão de Janot, uma decisão do Conselho havia criado um grupo de trabalho constituído por subprocuradores gerais para atuar nos casos oriundos da operação.

Ocorre que os processos da Lava Jato eram distribuídos diretamente a eles, o que implicava em fraude ao princípio do procurador natural, pedra de toque do sistema democrático e garantia do cidadão. A subprocuradora geral Áurea Maria Etelvina é a titular do ofício encarregado de atuar nos casos da Lava Jato no STJ. Cabe a ela receber os processos e requerer apoio de colegas para casos numerosos ou maior complexidade. Mas ela estava sendo tratorada pelo sistema de distribuição automática de processos da Lava Jato criada na gestão de Janot. Aras, como chefe da instituição, atuou junto ao Conselho para repor a ordem dar cabo à improvisação ilegal.

A decisão do Conselho de restituir a vigência do princípio do procurador natural, fez cair mais uma cidadela do lavajatismo, mas atiçou contra Aras os ainda azeitados canais que ligam agentes públicos do lavajatismo à grande mídia e seus bloqueiros. É desse contubérnio que nasceu o mantra de que Jucá finalmente conseguiu que o seu propósito de um grande acordo “com Supremo e tudo” se realizasse sob a gestão de Aras através do mandato da operação Lava Jato de Curitiba.

Aras nega, diz que a luta contra a corrupção continua com maior profissionalismo e resultados e que a Lava Jato era um instrumento e não um fim. Um instrumento que passou a viver em razão de si próprio, com os seus 38 mil investigados, que Aras diz não se sabe como foram selecionados e para que propósitos, e 350 Terabites de informação, os quais com o fim da operação passarão a ser auditados pela instituição a que a operação deveria servir. Em webinar com advogados, Aras disse esperar “que o enfrentamento à criminalidade continue a se fazer no mesmo modo que vinha se fazendo, mas no universo dos limites da Constituição e das leis. O lavajatismo há de passar”.

Se observarmos a ação da PGR no STJ para responsabilizar governadores no por esquemas de corrupção nos Estados durante a pandemia, Jucá não deverá ter vida mansa.

Veremos. Seguimos observando a esfinge.