Marighella – retrato falado do guerrilheiro, de Silvio Tendler

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Quem era Marighella? Essa é a questão que Silvio Tendler indaga ao abrir esse, que é um de seus filmes-memória do Brasil e daqueles que o construíram. Respondo: Marighella era acima de tudo um anti-imperialista. As indagações são acompanhadas por imagens de um Marighella jovem, ao som do Hino à Bandeira do Brasil em arranjo modificado, em que a construção sonora de crescente euforia e força do hino é invadida por uma organização quase dodecafônica, que conduz ao medo, caos e desilusão. É esse sentimento que irá acompanhar a narrativa do filme e a própria história de Marighella: sua luta pela constante libertação da pátria brasileira foi acompanhada de desilusões e dor.

O narrador inicia dizendo que “o guerrilheiro urbano é o homem que luta contra uma ditadura militar com armas, utilizando métodos não convencionais. Um revolucionário político é um patriota ardente. Ele é um lutador pela libertação de seu país, um amigo de sua gente e da liberdade. Carlos Marighella: manual do guerrilheiro urbano”. Discordo: Carlos Marighella era mais que um guerrilheiro urbano, era um revolucionário político que lutou até sua morte pela libertação do Brasil.

A voz em off que interpreta as leituras de Marighella responde: “quem sou eu? Apenas um mulato baiano”. Tendler recupera as sutilezas da identidade chamada Marighella, o soteropolitano que se forjou rebelde na rua que nasceu, abaixo do sapateiro onde viveu. Aderiu ao partido comunista em 1932. De avó africana, pai italiano, de Brasil Mestiço, como disse Clara Nunes. Veio de lá foi da África. E dos anseios pela revolução, aos 25 anos foi preso e torturado.

Tendler é categórico ao brevemente estabelecer Vargas como o ditador torturador de Marighella. No entanto ignora que, apesar das contradições, foi nesse mesmo período que o Brasil foi conduzido à efetivação de interesses endógenos, o que convergia especialmente com a postura anti-imperialista do próprio Marighella. A década de 30 atravessava um contexto mundial do anticomunismo, que foi acompanhado pelo Brasil. Reduzir Vargas à um ditador anticomunista me parece um desvio liberal, além de se opor à história, ao ignorar uma onda de autoritarismo global, na União Soviética, Alemanha, Estados Unidos, Ásia e na América Latina.

O problema não reside na denúncia do filme à prisão e torturas que Marighella e tantos outros militantes comunistas sofreram. O destaque desse fato estrondoso é mais que certeiro, é necessário. Mas da forma como se aborda, simplista, dá margem à alimentação de uma visão liberal da política, onde Vargas é colocado como um “mal” puro e simples, tornando fenômenos históricos e globais como reduto da subjetividade de um presidente. Em outras palavras, discutir os fatos a partir da maldade ou bondade de líderes e tirar do debate e narrativa do filme os interesses de Estados nacionais, não nos leva à recuperação integral das verdades da época de Marighella.

Atravessados esses descompassos de superficialidade, o filme retoma para a relevância de Marighella. Incluem uma entrevista em que Apolônio de Carvalho o adjetiva como o sedutor de militância de sua época. Na sequência, retrata quando Marighella é eleito deputado constituinte, entoando o poder do povo soberano, rumando em passos largos à democracia de nossa pátria.
Foi durante o governo JK que Marighella e sua esposa Clara puderam viver em liberdade. Também nessa época, o filme destaca sua desilusão sobre o comunismo, diante dos horrores de Stalin. No entanto e por mais uma vez, Tendler aborda questões de alta complexidade histórica e global com o reducionismo de “líderes autoritários”.

Jango é eleito e as sonhadas reformas, justiça social e o desenvolvimento em tais vias não ocorrem. O primeiro de abril materializa o golpe civil-militar de 1964. Marighella é preso em maio em um cinema, quando sofre um tiro no peito. Escreve porque resisti à prisão e coloca aos brasileiros duas saídas: resistir ao golpe ou se conformar. Em outras palavras, viver ou morrer, em uma equação na qual o conformismo significava a morte para Marighella.

Avança-se para quando o líder passar discursa em uma conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade – OLAS, ao compreender que somente pela integração e união de esforços com os povos latino-americanos seria possível construir uma ruptura ao regime militar. Afastado do comitê central do Partido Comunista Brasileiro, inicia a organização da luta armada independente no Brasil. Nasce a Ação Libertadora Nacional, a ALN, com o recrutamento de estudantes. Era um contexto de polarização e embates da esquerda: algumas organizações acreditam ser o momento de uma saída socialista, e outras de uma libertação nacional, nacionalista, com a possibilidade de integração de forças anti-imperialista. Foi essa a frente assumida por Marighella. Começam os treinamentos e ações da guerrilha urbana, como a tomada da rádio nacional para a divulgação do manifesto de Marighella, em que se anunciava à ida para o campo, com expropriações de terra e outros sonhos que jamais aconteceram.

Nessa etapa o documentário é movimentado por depoimentos de alguns militantes, que passam a descrever a captura do embaixador dos Estado Unidos no Brasil, Charles Elbrick. A ação integrava objetivos de quebra de censura na ditadura. Os planos sequências terminam por revelar uma falta de força da militância da ANL. É curioso como essa “falta de força” é refletida pela própria estética e composição que revela tal mensagem ao espectador de Tendler. A monotonia e pouca criatividade desse estágio do filme preenchem a lacuna de acervos cinematográficos históricos destes acontecimentos para revelar entrevistas pouco interessantes e com entrevistados repetitivos.

A culpa não é do cineasta, já que as poucas imagens em movimento de Marighella eram apenas de sua morte. Mas é justamente diante de injustiças históricas como esta, que afetam a própria construção da memória de um povo perante um grande brasileiro como Marighella, que o cineasta brasileiro é incumbido de mais um dever. O de assumir a potencialidade criativa de ousar recriar a memória, a partir de relatos que acompanhem a grandeza daquele que é tema do retrato falado do cinema documental.

O filme vai perdendo a intensidade característica de seu início, o que me parece a quebra de expectativas de quem achava que faria jus à potência de Carlos Marighella. Nem mesmo a atmosfera sombria e desesperadora do período é retratada: sobra monotonia e pouca complexidade de percursos históricos significativos para os movimentos revolucionários durante a ditadura militar.

Mas a maior frustração vem com o momento da morte de Marighella. Ouso até dizer que é retratada como um fato sequencial qualquer, o que de fato não acompanha o impacto que merece. A grandeza da construção narrativa somente se recupera com as imagens de Marighella, morto pela covardia de canalhas que forjavam líderes anti-imperialistas como sendo “terroristas”. Tendler volta a assumir sua poesia imagética através das próprias palavras de um guerrilheiro que, antes de tudo, era poeta e brasileiro. Finaliza com o Rondó da Liberdade, em que Marighella escreve:

“É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.
Há os que têm vocação para escravo,
mas há os escravos que revoltam contra a escravidão.
Não ficar de joelhos, que não é racional renunciar a ser livre.
Mesmo os escravos por vocação
devem ser obrigados a ser livres,
quando as algemas forem quebradas.
É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.
O homem deve ser livre
E oamor é que não se detém ante nenhum obstáculo,
e pode mesmo existir até quando não se é livre.
E no entanto ele é em si mesmo
a expressão mais elevada do que houver de mais livre
em todas as gamas do humano sentimento.
É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.”

Marighella – retrato falado do guerrilheiro integra o rol de contribuições significativas que Silvio Tendler honrou na construção do cinema documental brasileiro. Suas obras são, sem dúvida nenhuma, de grande valia cultural ao acervo de produções cinematográficas brasileiras. Trata-se do poder que seus filmes assumem, de sedimentarem memórias no imaginário cultural brasileiro. Recuperando o mesmo fio que conduz o início do filme, com indagações profundas acerca da identidade e ação de brasileiros que lutaram para mudar os rumos da injustiça social e do imperialismo que definham a pátria, Tendler pergunta à Takao Amano: “se tivesse que refazer tudo, você faria tudo de novo?” Faria, responde. “À esse ponto eu posso ser um patriota equivocado, mas não sou uma arrependido. Eu vou morrer assim”.

Faço divergências específicas à obra, para ao fim novamente saudá-la, porque sei da potencialidade que ela é – e seria ainda mais – de atingir. Sua difusão e circulação é um ensino de memória às novas gerações, originadas daquela que tentou, e em algumas medidas conseguiu, construir o Brasil. Marighella – retrato falado do guerrilheiro é, em imagens e sons, a memória desta geração, para nutrir novas construções que retrilhem os rumos de nosso anêmico Brasil.