O fetiche do empreendedor individualista e seu sucesso profissional – 3

O fetiche do empreendedor individualista e seu sucesso profissional - 3
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Um dos mitos que vem seduzindo jovens de diferentes formações está na crença do alcance do “sucesso” profissional através do empreendedorismo próprio e isolado. Algo como virar um microempresário ou um “empresário de si”. Ilusão que é alimentada pelas supostas facilidades das tecnologias de informação e comunicação e que, muitas vezes, os condicionam a treinar sua musculatura individualista para a vida sem atentar que o “sucesso”, palavrinha capciosa essa, depende de muitas questões do âmbito coletivo. É o individualismo exacerbado conformando ilusões do atomismo privatista na política, na economia e nas relações sociais que se tornaram mais virtuais em redes de internet do que qualquer outra coisa.

Nenhuma originalidade nesse tema, o que não significa que não deva ser repisado, mesmo porque também o espírito de “originalidade” perpassa essa disposição empreendedora e confere ao tal suposto sucesso não só as características do sonho de riqueza material, mas também as de natureza psicológica e existencial, como ser feliz e diferente dos outros indivíduos. Alguns acreditam que vão ficar milionários, muitos se frustrando rapidamente ao entrarem para as estatísticas do desemprego estrutural do capitalismo financeirizado. Muitos nem se reconhecem como proletários e até se ofendem se assim são chamados.

Ser novo e inédito, por outro lado, mesmo que de um ineditismo secular e reiterado, com aparência dita “pós-moderna”, também conferiria certo status profissional e de personalidade. Estar no mercado significa que o sujeito está vivo, ativo, antenado, veloz e flexível – um novo tipo de revolucionário romântico. Isso, ainda que esse mercado seja uma selva de monstros bárbaros ou um saco de caranguejos vivos atracando-se até a hora de ir para água fervente. Condição, obviamente, contrastante com a ilusão individualista incentivada pelos fetiches do “livre mercado” e do “livre arbítrio”, como se fôssemos heróis ou potenciais super-heróis desvinculados de categorias profissionais e de classes sociais.

Essas reflexões convergem para os verbetes empreendedorismo e sucesso profissional, dentro da série sobre fetiches sociais que ando publicando aqui. Ambos estão interpenetrados nesse contexto em que a velocidade da informação oblitera, muitas vezes, a capacidade de reflexão e compreensão sobre a condição histórica dos indivíduos de estarem no mundo e fazerem sua própria vida. O fetiche do “livre mercado” – que nunca foi livre coisa alguma, pois sempre dependeu de instituições do Estado capitalista para se garantir – e o fetiche do “livre arbítrio” – que também nunca foi livre dentro das determinações históricas da divisão social do trabalho e suas diferenças de classes sociais –, acalentam a ilusão da beatitude celestial (do sucesso profissional e existencial) como resultado do heroísmo autônomo dos indivíduos.

É o negócio da liberdade de ser o que se quer ser, combinado com o esforço isolado e individual que garantiria o suposto sucesso. O cara é bem sucedido ou o cara é realizado, dizem. Seriam incapazes de sucesso os incompetentes ou os que nunca se esforçaram – o que leva facilmente à crença de ricos competentes e esforçados e pobres incompetentes e indolentes – e, por isso, estes mereceriam continuar pobres.

O espírito empreendedor acredita que o sucesso individual deve preponderar sobre um projeto coletivo. É a seguinte postura: eu estudei, lutei, me formei, aprendi coisas que outros não aprenderam, sou um especialista, original ou não, obedeci às leis, gastei meu tempo, disputei e ganhei vagas no mercado de trabalho, eu mereço ter sucesso, o sucesso é meu e ninguém me tira. E este é caracterizado por quantidade de dinheiro e oportunidades de lazer, cultura, viagens. Por que vou me preocupar com os demais ou com um sucesso coletivo se a vida é cada um por si? Só devem chegar lá os que realmente merecem, defende o espírito heroico da meritocracia purificada de contradições.

Isso, quando o empreendedor teve oportunidade de estudar e conseguir um diploma de curso superior. Quando não estudou e soube ganhar e acumular dinheiro ao longo da vida, tanto faz se honestamente ou dando pernada nos outros, tudo no mundo para ele se reduz ao dinheiro, o resto é besteira, obviamente ignorando sua condição existencial e reificada (dele, indivíduo) de “mercadoria”. Ele mesmo é dinheiro, sem saber, e até esnoba os que passaram pelo ensino superior, que também são mercadorias, embora todos de carne, osso, sangue, suor e afetos humanos. Seu sucesso é o dinheiro, mesmo que, ao morrer, ele não tenha tido tempo de gastá-lo em vida ou deixado certa quantia para seus herdeiros pularem em cima como abutres-mercadorias.

O empreendedor se julga superior aos trabalhadores assalariados do setor privado ou público, vistos por ele como ‘escravos’ burocratizados nada criativos, enquadrados em regras e rotinas. Ele não! Pois, afinal, considera-se livre e “dono” do seu próprio negócio e, claro, como no melhor dos mundos, livre de patrões. Identifica-se, assim, com os grandes empresários, diferindo deles, conforme acredita, apenas por uma questão de grau ou escala. Ou então, quem sabe, de oportunidades e conjunturas. Sempre fala mal do Estado (que nem deveria existir, segundo ele), embora dependa dele para a garantia das leis e das condições e regras de mercado, além de segurança nas ruas e no ambiente de negócios, mesmo tendo horror a pagar impostos. Seu “sucesso” é poder viajar uma vez por ano para Europa ou Estados Unidos, o que a maioria dos brasileiros nem sonha poder fazer durante a vida inteira.

Acredita que seu livre arbítrio é o de poder escolher entre diferentes alternativas, mas também, mal sabendo, para alimentar seu próprio autoengano. Mesmo que tenha ligeira intuição, nem desconfia que os resultados do seu negócio dependem muito do chamado tal “mercado” e, obviamente, de como e quanto o Estado regula ou desregula esse mercado, incluindo diferentes atores em conflito, alguns até intangíveis em termos geográficos, que ele sequer consegue esquadrinhar. Não consegue ver que sua vida depende da produção global capitalista. Por ser um individualista exacerbado nunca aprendeu a desenvolver a chamada imaginação sociológica.

Mal sabe ainda que o grande negócio não é “estar no mercado”, mas sim exatamente “fora do mercado” – porém isso não é para qualquer um, e sim para grandes oligopólios das fusões capitalistas que dão uma gigantesca banana para indivíduos em situação difusa, transformados em meros consumidores-mecadorias, ou para algum tipo de projeto coletivo de sociedade. Não consegue enxergar que esse privilégio luxuoso, de viver sem concorrência, é para as grandes corporações que estão “acima” da sociedade, “fora” e distante, portanto, das agruras dos indivíduos e dos empreendedores individuais que, por sua vez, também acham que têm que dar uma banana para a possibilidade de algum projeto coletivo com os demais mortais.

Para encerrar, como sugestão de leitura, o livro “O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços da era digital”, São Paulo: Boitempo (2018), de Ricardo Antunes, professor titular de sociologia do trabalho no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Esse é apenas um dos diversos títulos da obra do autor sobre temas relacionados ao trabalho, sua precarização e transformações no mundo contemporâneo. Vejam o que ele afirma num tópico sobre o trabalho em serviços e seus novos significados:

“Um grupo cada vez mais minoritário estará no topo dos assalariados. Entretanto, a instabilidade poderá levá-lo a ruir face a qualquer oscilação do mercado, com seus tempos, movimentos, espaços e territórios em constante mutação. A esses se somam ainda uma massa de ‘empreendedores’, uma mescla de burguês-de-si-próprio e proletário-de-si-mesmo. Mas é bom recordar que há várias resistências nos espaços de trabalho e nas lutas sindicais a essas formas de trabalho que procuram ocultar seu assalariamento, por meio do mito do trabalho autônomo.” (P. 34).

O autor faz essa observação para lembrar o fenômeno das modalidades de trabalhos “zerados”, “uberizados”, “pejotizados”, “intermitentes”, “flexíveis” em condições que exigem das pessoas cumprimento de metas que levam a adoecimentos, depressões e até suicídios. Pergunto eu: o que dizer das agruras existenciais do empresário de si que vê sua “empresa” ir para o brejo? Quem é o fracassado, ele, sua empresa-empreendimento ou a vida (sistema social) em geral? Mas o que a vida em geral tem a ver com seu fracasso pessoal se o empreendedor é o herói movido por seu “livre-arbítrio” num “mercado livre” para todos?

  1. Conheço o potencial do Álvaro e não me surpreendo com o seu pensamento. Competente profissional, jornalista experiente. Tem a minha concordância
    Parabéns.

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